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O grande erro

 Os artigos do Fernando Schuler são sempre revigorantes, principalmente para aqueles que ainda tem algum apreço pela liberde.


O grande erro

A reinvenção do delito de opinião, nos últimos anos, fez mal ao país

Por Fernando Schüler


"Muito já se escreveu a respeito daquela frase da ministra Cármen Lúcia sobre os “213 milhões de pequenos tiranos”. Acho que entendo o que ela quis dizer. Algo na linha: ninguém é bem dono de sua liberdade, então temos que regular. Está o.k., a liberdade de expressão é sempre regulada. Mesmo nos Estados Unidos, pátria da Primeira Emenda, há uma regra: ficam de fora discursos que geram um perigo “claro e imediato”. O que se protege são ideias, opiniões, ainda que bizarras ou “tirânicas”. E é aí que mora o problema. Se os cidadãos são de fato tiranos, então precisamos mesmo de um imenso Leviatã para dar conta da confusão. Agora com uma penca de big techs como tentáculos, fazendo o trabalho duro da censura, sob pena de responsabilização. Depois de anos amaldiçoando os algoritmos, quem sabe finalmente descobrimos que era exatamente de algoritmos que precisávamos. E com delegação oficial para fazer a censura. Censura do bem, a favor, e não contra a nossa liberdade. Discordo da ministra. Seus tiranos são apenas cidadãos que ganharam o poder da palavra com a tecnologia. Algo que gera barulho, irrita e é feito de boa e má educação, verdade e mentira, e desacordo sobre o que isso significa. Coisas do mundo da democracia, e não da tirania. A democracia é feita de ruído, ao contrário da tirania, feita de silêncio.


Grandes democracias vêm regulando seu espaço digital. A Alemanha fez seu NetzDG; a França, recentemente, fez sua regulação. Os americanos, lá em 1791, aprovaram o Bill of Rights. Todas, sem exceção, aprovaram suas leis no Parlamento. O Brasil fez isso, em 2014, com o Marco Civil da Internet. É essa a nossa lei. E não há nenhuma “omissão legislativa” em não alterar uma lei. A ideia de que uma lei qualquer pode ser derrubada em nome de considerações abstratas sobre a liberdade, a dignidade humana ou a fragilidade dos cidadãos diante da tecnologia significa, na prática, uma inversão do pacto republicano. Significa a ocupação pelo Judiciário de uma esfera de poder que pertence ao Legislativo. Não por um capricho, mas porque a sociedade é diversa. E é no Legislativo que essa diversidade tem sua expressão. O que assistimos nesse julgamento, no STF, foi a estranha imagem de uma diversidade de visões normativas entre pessoas que representam a si mesmas. Agentes de Estado que estão lá para fazer cumprir as leis, mas que, ao cabo, produzem um ordenamento normativo inteiramente original e distinto daquele aprovado pelo Congresso, regulando nossas liberdades e direitos. Muita gente já se acostumou com isso no Brasil. E quem sabe aí esteja o nosso problema.


Na prática, o que fizemos foi trocar um modelo previsível e garantista da liberdade de expressão por um regime complexo e essencialmente aberto à interpretação. Se alguém acha que foram as big techs que perderam alguma coisa, se engana. Quem perde são os cidadãos, que têm seus direitos relativizados. As pessoas descobrirão isso quando tiverem postagens derrubadas e as redes mergulharem em uma guerra de notificações. A pergunta central: que critérios serão usados pelas empresas para efetivarem seu trabalho de censura? Em especial, que critérios serão utilizados nos temas “democráticos”, que dizem respeito a opinião, seja no campo político, seja no comportamental? No debate no STF, chamou a atenção o que vou denominar “argumento da metralhadora”. Seu autor foi o ministro Dias Toffoli, comparando o direito à expressão com a venda de uma metralhadora. O argumento tem um gosto retórico. Alerta-se a sociedade sobre crimes perfeitamente tipificados, como a venda de uma arma proibida, para logo a seguir incluir variações indefinidas sobre “delitos de opinião” no pacote. Coisa parecida se deu com atentados a escolas, indução ao suicídio, pornografia infantil e outras bizarrices. Por óbvio, o problema não é esse. Se a pauta em questão girasse em torno desses temas, incluindo-se também os crimes de racismo, tráfico ou pedofilia, não haveria nenhuma divergência sobre a necessidade de regras duras de proteção. O ponto é: não foi sobre nada disso a censura praticada em larga escala no Brasil dos últimos anos. Foi sobre a opinião política. Sobre quem questionou o resultado de urnas eleitorais, fez críticas duras ao STF, manifestou preferência irrelevante por uma ditadura ou mesmo expôs sua visão sobre a própria liberdade de expressão. Não é preciso voltar a essa história constrangedora. Se as plataformas resolverem usar como critério de “cuidado” nosso histórico recente de decisões sobre censura (e é razoável que o façam), suspeito que estamos em maus lençóis.


O que o STF fez foi realizar uma ampla leitura de época em seu julgamento. Diria que uma leitura lastreada pela “cultura do medo”, na qual navegamos, e não apenas no Brasil, na última década e meia. Pesquisa com 23 milhões de chamadas em 47 grandes veículos de imprensa americanos mostrou como temas associados a “medo”, “raiva” ou “nojo” ganharam forte tração a partir da virada para os anos 2010. O mundo não se tornou mais hostil e perigoso a partir da última década. O que mudou foi a percepção das pessoas. Algo que deriva da mecânica das redes sociais, que tendem a premiar o pânico em torno de qualquer coisa (com sabidas consequências para a saúde mental coletiva). A cultura do medo não é propriamente uma novidade. O filósofo Frank Furedi lançou How Fear Works ainda nos anos 1990, mostrando como, nos anos do pós-guerra, fomos gradativamente migrando de um amplo consenso moral, confiança nas instituições e no progresso para uma cultura marcada pela ideia de que “somos frágeis, os cidadãos incapazes de lidar com a própria democracia, as instituições pouco confiáveis, o futuro incerto e assustador”. Não é por acaso que a obra-prima do norueguês Edvard Munch, O Grito, é muitas vezes usada como uma imagem de nossa época. O desenho de um homem sem identidade, envolto em uma onda de medo, em um mundo que também parece se desmanchar. Munch conta que concebeu a obra em uma tarde qualquer, em Oslo, na década de 1890, quando teve a súbita inspiração, em meio a um momento de “melancolia e ansiedade”. No julgamento das redes, no STF, o que assistimos foi uma versão sintética desse fenômeno: a urgência em regular. A lógica impressionista do risco e das citações dramáticas. O povo de tiranos, o oceano de mentiras, a incivilidade, a metralhadora, o eleitor ordinário diante da “desordem informacional”. Não tanto o medo, mas a sua politização. A ideia sombria, bem posta por Furedi, de que “nossa segurança, em uma medida incerta, depende do fato de que devemos abrir mão de nossas liberdades”.


De fato, há imensos riscos na internet. O ministro Barroso, presidente do STF, está certo quando diz que “não importa se alguém é liberal, conservador ou progressista: não pode haver pornografia infantil, terrorismo, venda de armas ou instigação ao suicídio nas redes”. Fosse esse o foco, no país, daríamos um enorme passo adiante na regulação da internet. Passar desse universo à censura política, de visões de mundo, de comportamento ou cultura é de fato um grande erro. A reinvenção do delito de opinião e da censura prévia, nos últimos anos, fez muito mal ao país. Nós não teremos uma democracia liberal, no Brasil, se continuarmos insistindo nisso."


Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper


Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951

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