terça-feira, 2 de setembro de 2025

Editorial El País

 Editorial do diário espanhol de “El País” de 2 de setembro de 2025

"Xi aproveita os erros de Trump

China tira partido da cimeira de Tianjin da hostilidade comercial e diplomática destacada pelo presidente dos EUA

O presidente chinês, Xi Jinping, vem anunciando desde há anos mudanças na ordem mundial como não tinham sido vistas no último século, mas agora conseguiu sintetizar numa única fotografia o mais espetacular de todos: ser ele mesmo quem reuniu mais de 20 países que ultrapassam, no seu conjunto, 40% da população e 20% do PIB mundial em torno da ideia de desbancar os EUA da liderança internacional. O quadro da cimeira, realizada na cidade chinesa de Tianjin, foi a Organização de Cooperação de Xangai, uma das instituições criadas por Pequim há quase um quarto de século como alternativa ao domínio de Washington das organizações surgidas após a Segunda Guerra Mundial e, acima de tudo, perante a incapacidade de as reformar e acomodar às mudanças demográficas e económicas globais.


A foto de Tianjin certifica uma aproximação incomum entre a Índia e a China, ao mesmo tempo que bloqueia a estratégia americana de usar Delhi como contrapeso à influência chinesa. Também dá oxigênio a Putin, com maior margem para dar longas a Trump nas suas pretensões de pacificador da guerra da Ucrânia. Para o líder republicano é uma derrota auto-infligida com duas decisões próprias: as tarifas de punição à Índia de 50% pela compra de petróleo à Rússia e a sua falsa mediação na trégua entre a Índia e o Paquistão, que o presidente reivindicou obscenamente perante Modi para obter o seu apoio para o Nobel da Paz.


A cimeira de Tianjin ofusca o carácter histórico que Trump reivindicou para o seu encontro com Putin no Alasca em 15 de agosto, de onde nada saiu senão prazos vazios para a paz. Também neutraliza a cerimónia de rendição apaziguadora oficializada na Sala Oval de 18 de agosto, quando sete mandatários europeus evitaram uma nova humilhação do presidente da Ucrânia perante as câmaras. Finalmente, exprime uma mudança de atmosfera perante as guerras pautais trumpistas, as suas exigências de vassalagem e extorsões e ameaças que só são válidas para os aliados. A centralidade da China expressa pela cimeira corresponde ao sucesso da sua resistência à agressividade comercial e diplomática de Trump.


O presidente dos EUA está facilitando as coisas para a China de um ponto inimaginável. Desmontou o poder mole do seu país. Ele desmantelou sua diplomacia e seus organismos de cooperação. Puniu países amigos e vizinhos com ameaças anexionistas e tarifas arbitrárias. E já agora, está destruindo as instituições multilaterais que tinham servido a hegemonia de Washington, deixando um vazio geopolítico que Pequim está preenchendo agora. A principal vítima de uma estratégia tão desagradável é o próprio EUA, mas os danos transbordam a sua geografia. O mundo multipolar que a China oferece como alternativa é igualmente hostil à primazia do direito internacional, à protecção dos direitos humanos e ao pluralismo. Perante a agressividade russa e as pretensões hegemônicas chinesas, a resposta trumpista paradoxal é o questionamento das alianças ocidentais e a punição aos seus aliados. E os beneficiários são Putin e Xi Jinping. " 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Norma Couri

 O SEGREDO DOS SEUS SONHOS


Sonhos estão aí para serem decodificados ‘antes que seja tarde demais’, alerta filósofa francesa.


Em ‘A inteligência do sonho’, Anne Dufourmantelle faz uma análise histórica e filosófica


Por Norma Couri  — para o Valor, de São Paulo

26/08/2025 


As civilizações antigas nunca desprezaram os enigmas dos sonhos, seja em tempos de guerra ou de paz. Eles podem contornar as censuras internas do sonhador e mostrar aquilo que sempre receamos de pior.


A filósofa e psicanalista francesa Anne Dufourmantelle lançou “A inteligência do sonho: Fantasia, aparições, inspiração”, seu 15º livro, em 2012, e mais 5 depois. A edição brasileira está sendo lançada neste ano.


Em 2017, enquanto nadava numa praia perto de Saint-Tropez, o mar se agitou, e ela morreu ao tentar salvar duas crianças a 50 metros de onde estava. Tinha 53 anos. As crianças foram resgatadas com vida. Sua morte confirma o velho adágio de que filosofar é aprender a morrer. Em 2011, a autora havia lançado “Éloge du risque” (Elogio do risco).


“A inteligência do sonho” é dedicado “para aqueles que sabem o que os sonhos podem fazer” e adverte, como o Talmude, que “um sonho não decifrado é como uma carta que lhe é endereçada e você não abre”. O recado está dado: o sonho está aí para ser decodificado “antes que o corpo adoeça, antes que o acidente sobrevenha, antes que seja tarde demais”.


Visões do divino, oráculos sobre o futuro ou delírios fazem parte das aventuras medievais de Lancelot ou do amor de Dante e Beatriz na “Divina Comédia”. Alucinações perturbam o Cavaleiro de Triste Figura, Dom Quixote, criado por Miguel de Cervantes na Espanha do século XVII.


Os gregos antigos acreditavam que os sonhos eram mediadores entre deuses e humanos. Os indígenas levam o sonho a sério nos ritos de iniciação e consideram das mais perigosas a viagem nesses territórios.


Os sonhos podem ser presságios, acontecer com a doçura dos trovadores ou com o gozo interdito da imaginação erótica. São tão reveladores que, em 1215, durante o Quarto Concílio de Latrão convocado pelo papa Inocêncio III, a confissão dos sonhos dos fiéis tornou-se obrigatória como prova da retidão do caráter.


O livro de Anne Dufourmantelle faz uma leitura histórico-filosófica sobre o sonho e alerta contra o esquecimento: “O sonho é um enigma tão importante quanto o da memória”, abre uma janela para nós durante a noite, pode iluminar uma vida. Sua “inteligência” supõe uma inversão entre lucidez e razão, anuncia um mundo por vir do qual ainda não nos tínhamos dado conta.


Um dos capítulos relembra a dissidência entre o criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), que via nos sonhos o recalque dos desejos na dualidade entre a pulsão da morte e o princípio do prazer, e seu então discípulo preferido, Carl G. Jung (1875-1961), para quem os sonhos portavam arquétipos de uma memória coletiva.


“O que leva o sujeito a crescer ou a se autodestruir?” Dufourmantelle lembra que, para Freud, cada detalhe do sonho importa. O núcleo central do sonho esconde-se sob uma charada. Ela cifra nosso desejo reprimido que também “apaga” cenas traumáticas.


Lewis Carroll (1832-1898) matou a charada em “Alice no País das Maravilhas” (1865) quando o espelho deformante diz a verdade. O sonho é esse espelho. Inverte códigos, obriga o confronto com o nonsense, mas a autora garante que ele é decifrável. E libertador se interpretado numa psicanálise, porque não existe descoberta do sonho sem relato, sem a escuta.


A revelação da verdade passa por nossos abismos. Acidentes, amores frustrados, lutos. O confronto só acontece “quando o real lhe perfura a alma”, ela diz. As fantasias, os medos, os pavores do desejo nos protegem desse real e dá forma a figuras imateriais. Esses mensageiros cumprem a função de mediadores para atingirmos a inteligência criadora que torna possível uma virada de vida, a experiência do corpo erótico. “Quisemos que os anjos nos aparecessem, já que Deus, dizem, não responde. Esse silêncio assombra o mundo.”


Premonição ou não do que lhe aconteceria cinco anos depois, Dufourmantelle escreve sobre a morte. “Por que morremos assim? Por que vivemos tão pouco?” Para a psicanalista, a música e a inspiração são versões da transcendência tão íntimas como a linguagem do sonho, mas ao situar as vozes persecutórias no mesmo patamar, ela cita a loucura que acometeu o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) aos 44 anos. “A loucura vem como um socorro diante da lâmina afiada do real para uma sensibilidade viva demais.”


Para enfrentar uma perda que traz angústia, depressão, temos de ir ao seu encontro. Freud escreveu que “recalca-se uma criança como se respira”. É preciso muita coragem para ouvir o que dizem os sonhos. A autora nos convida a acreditar no seu poder mágico de metamorfosear fragilidades em força e liberdade.


Este livro nos aponta o sonho como um procedimento subversivo de informação. Pode mudar uma vida. Dufourmantelle cita Blaise Pascal (1623-1662), que ao ler o Evangelho de João, capítulo 17, sofre uma conversão. O cientista francês escreve essa epifania como o relato de um sonho, e o costura no interior de sua jaqueta para nunca se esquecer dele. O relato que o acompanhou até o fim da vida só foi descoberto depois de sua morte. É dele a frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.


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Será venda de sentença?

 *PF encontra com lobista novas minutas de decisões de mais quatro gabinetes de ministros do STJ*


No total, PF já encontrou minutas que citam oito magistrados da corte, mas relatório aponta que não há indícios de envolvimento dos ministros e pede apuração da origem dos documentos; ministros disseram desconhecer os vazamentos e negaram ter dado decisões favorecendo os interesses do lobista


Aguirre Talento


BRASÍLIA - A investigação da Polícia Federal sobre um esquema de venda de decisões e vazamento de informações do Superior Tribunal de Justiça (STJ) identificou novas minutas de decisões de ministros da Corte em um notebook do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves. Os documentos também estavam no telefone celular do advogado Roberto Zampieri, assassinado no final de 2023.


Os textos estão vinculados aos gabinetes de mais quatro ministros do STJ e de um ex-ministro que ainda não haviam entrado no foco da Operação Sisamnes. O inquérito, aberto no ano passado pela Polícia Federal, começou a apurar suspeitas de vazamentos envolvendo os gabinetes de outros quatro magistrados.


Diante das novas descobertas de vazamento de minutas dos gabinetes de Marco Buzzi, Antônio Carlos Ferreira, João Otávio de Noronha e Ricardo Villas Bôas Cueva, a investigação pode ampliar seu escopo para um total de oito gabinetes, correspondente a quase um quarto da Corte, formada por 33 magistrados.


Procurados, os ministros disseram desconhecer os vazamentos e negaram ter favorecido as partes representadas pelo lobista. A defesa de Andreson não quis se manifestar.


Os outros quatro gabinetes que já eram alvo de apuração são de Isabel Galotti, Moura Ribeiro, Nancy Andrighi e Og Fernandes. Quando o vazamento desses documentos veio a público, no final do ano passado, os ministros afirmaram que pediram ao STJ a abertura de apuração sobre esses fatos e negaram ter conhecimento dos vazamentos.


O STJ, na época, informou ter aberto sindicâncias para apurar as suspeitas de que servidores do tribunal estavam envolvidos nesses vazamentos e pediu a abertura de investigação à Polícia Federal. Essas sindicâncias ainda estão em tramitação.



A PF aponta que não há indícios do envolvimento direto dos ministros nesses novos vazamentos, mas que a origem deve ser apurada.


“Registra-se, pelos motivos anteriormente expostos, que a presença dessas minutas, com certas semelhanças às decisões oficialmente publicadas, não implica, por si só, em suspeitas quanto à conduta dos ministros. Entretanto, constitui elemento que não pode ser desconsiderado, exigindo análise criteriosa e, se necessário, diligências adicionais, a critério da autoridade policial, para assegurar a integridade e autenticidade dos documentos em questão”, diz o relatório obtido com exclusividade pelo Estadão.


A PF vai entregar nos próximos dias ao ministro Cristiano Zanin um relatório parcial sobre as informações apuradas até o momento envolvendo os assessores do STJ. Em documento enviado ao ministro, a PF relatou a existência de um “volume expressivo de novas provas” e disse que pretende ampliar o escopo da apuração.


“Parte relevante desse material não apenas reforça hipóteses previamente estabelecidas, como também amplia o escopo investigativo, revelando conexões até então não identificadas e exigindo reorganização lógica e cronológica dos elementos já constantes dos autos investigativos”, apontou a PF.


Além de terem encontrado essas minutas com trechos semelhantes às decisões oficiais dos ministros, os investigadores também colheram indícios de que o lobista forjava documentos do STJ para tentar captar clientes. No notebook dele, a PF encontrou modelos de decisões com marca d’água da Corte e uma falsa decisão de prisão atribuída ao ministro Og Fernandes na Operação Faroeste, mas que nunca existiu.


A suspeita da PF é que o lobista falsificou essas informações para tentar extorquir um empresário. Com isso, a tendência é que a hipótese inicial sobre vazamentos do gabinete do ministro Og seja descartada. Procurado, o gabinete não quis se manifestar.


A equipe da PF fez uma separação entre os dois tipos de arquivos encontrados no notebook do lobista. Em um grupo, havia minutas totalmente divergentes com as decisões dos ministros. Já outros arquivos apresentavam indícios de se tratarem de minutas oficiais vazadas de dentro do STJ: foram criadas em data anterior às decisões efetivamente proferidas e possuíam trechos muito parecidos.


‘*Trechos coincidentes’*



Um dos novos documentos identificados foi uma minuta de voto do ministro Marco Buzzi em um processo de uma disputa fundiária em Mato Grosso. O arquivo tinha data de criação de 19 de outubro de 2018, mas o ministro só proferiu efetivamente a decisão dois meses depois. De acordo com a PF, os documentos tinham diversos “trechos coincidentes”.


A investigação apreendeu um arquivo no formato do programa Word criado em 19 de julho de 2019 por um funcionário da empresa de Andreson, mas que simulava outra minuta de decisão do ministro Buzzi. Tratava-se de um processo da disputa entre uma empresa de telefonia e uma seguradora. A decisão só foi efetivamente publicada em 5 de agosto, quase um mês depois. A PF novamente apontou que os documentos tinham trechos semelhantes.


“O gabinete do Ministro Marco Buzzi informa que não possui conhecimento sobre o vazamento de trechos das deliberações referidas pela reportagem. Esclarece, todavia, que os projetos de decisões são minutados em sistema interno do Tribunal, sendo que os processos mencionados foram examinados, mais de uma vez, em colegiado, recebendo julgamentos unânimes”, afirmou o gabinete.


O relatório também registrou que o lobista possuía a minuta de um voto a ser proferido pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva em um julgamento da Terceira Turma do STJ. O arquivo encontrado no notebook de Andreson foi criado quatro dias antes de uma das sessões do julgamento, que ocorreu em 6 de fevereiro de 2024. Procurado, o gabinete do ministro não se manifestou.


No notebook dele, ainda foi encontrada a minuta de uma decisão do ex-ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que morreu em abril de 2023. O arquivo encontrado no notebook de Andreson foi criado um dia antes de a decisão do ministro ser efetivamente publicada e tinha como criador o seguinte usuário: “Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação”. “Em simples comparação da minuta com a decisão exarada pelo ministro, verificou-se que o teor parece ser o mesmo”, diz a PF.


A Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação não está vinculada ao gabinete do ministro, mas à direção geral do tribunal e é responsável pela administração dos sistemas de informática da corte.


*Extração do celular revelou mais documentos*



Essa investigação sobre suspeitas de venda de decisões do STJ teve início a partir da apreensão do celular do advogado assassinado em Cuiabá em dezembro de 2023, Roberto Zampieri.


Na época, o item foi apreendido para permitir a investigação dos motivos do homicídio. O Ministério Público de Mato Grosso, porém, detectou indícios da compra de decisões judiciais e enviou o material para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Depois disso, o CNJ encontrou diálogos de Zampieri com o lobista Andreson de Oliveira Gonçalves e detectou suspeitas de vazamento e venda de decisões por assessores de gabinetes do STJ. Por isso, o caso foi enviado para investigação da Polícia Federal.


Uma nova análise feita pela PF no celular do advogado Roberto Zampieri também encontrou novas minutas de documentos do STJ que não faziam parte do escopo inicial da investigação. Esses documentos, enviados por Andreson ao advogado, foram alvo de uma análise comparativa entre a data de criação das minutas e a disponibilização de forma pública nos sistemas do STJ.


O relatório identificou, por exemplo, que o lobista teve acesso à minuta de um relatório e voto a serem proferidos pelo ministro João Otávio de Noronha, em um julgamento colegiado de um recurso proveniente do Estado do Pará. O documento foi compartilhado por Andreson em data posterior a esse julgamento, mas a PF identificou que a criação do arquivo obtido pelo lobista foi anterior à publicação da decisão no Diário Oficial.


Com isso, é possível que o lobista teve acesso a uma versão do documento que costuma ser disponibilizado às partes do processo antes da divulgação no Diário Oficial, o que não constituiria uma irregularidade. Questionado sobre esse caso, o gabinete do ministro Noronha afirmou que as decisões do processo foram proferidas de forma unânime pelo colegiado.


A extração de dados feita pela PF também detectou uma minuta de decisão do ministro Antônio Carlos Ferreira compartilhada por Andreson com Zampieri no dia 16 de agosto de 2019, mas que só foi efetivamente proferida em 1º de outubro de 2019. O processo tratava de uma disputa sobre pagamento de indenização entre duas empresas do Rio Grande do Sul. O recurso foi negado pelo ministro.


Esse caso já tinha sido apontado no ano passado em um relatório complementar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre os diálogos entre Zampieri e Andreson, mas ainda não havia sido citado na investigação da PF.


Procurado, o ministro Antônio Carlos disse que pediu à Presidência do STJ a abertura de uma investigação para apurar a origem do vazamento dessa minuta logo que a informação chegou ao seu conhecimento, ainda no ano passado.


https://www.estadao.com.br/politica/pf-encontra-com-lobista-novas-minutas-de-decisoes-de-outros-quatro-gabinetes-de-ministros-do-stj/

Carolina Azevedo

 Itamar, Ernaux e Ferrante são interessantes, mas não literatura, diz Aurora Bernardini


CAROLINA AZEVEDO


[RESUMO] Em entrevista, Aurora Fornoni Bernardini, professora aposentada da USP e tradutora renomada de italiano, inglês e russo, comenta a vinda de sua família da Itália, onde nasceu, para o Brasil, descreve o início de sua paixão pelo estudos de línguas e os atritos com a ditadura e afirma que a literatura contemporânea ficou mais pobre ao privilegiar o conteúdo e esquecer a forma.


Aos 84 anos, Aurora Fornoni Bernardini ainda traduz livros inteiros à mão. Nos cadernos de espiral sem pauta, em letra cursiva clara, adapta verso e prosa do italiano, do inglês e do russo. Sua empreitada mais recente foi a da autobiografia da escritora russa Nina Berberova, mais de 900 páginas divididas com o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpétuo, que a editora Kalinka lança em breve


Na hora de escolher o título, Aurora insistiu na tradução direta: "O cursivo é meu". Ao que a editora rebateu: "Os itálicos são meus", porque hoje ninguém sabe o que é cursivo.


Nascida em Domodossola, no norte da Itália, a professora sênior de língua e literatura russa da USP conta à reportagem que trabalha muito mais desde que se aposentou, ocupando-se sobretudo de resenhas de lançamentos.


Enquanto fala sobre as "várias solicitações" das editoras, ela organiza algumas das obras que acaba de receber em sua casa, cujas estantes já estão abarrotadas de livros. Onde sobra algum espaço entre as paredes, quadros pintados ao longo de sua vida formam uma galeria de retratos de amigos e familiares, muitos dos quais já não povoam seu dia a dia.


Em busca constante por uma ocupação intelectual —"é uma espécie de vício: se não tenho uma ocupação, me sinto vazia"—, Aurora coleciona opiniões categóricas sobre o mercado editorial contemporâneo. "Um fenômeno muito curioso acomete o mundo, mas o Brasil em particular: a literatura se baseia no conteúdo e esquece a forma", afirma.


Lembrando-se de um artigo que a ensaísta Walnice Nogueira Galvão publicou na Folha, a professora defende que escritos que trocam significante por significado "podem até ser interessantes, mas não são literatura".


Seu primeiro exemplo é "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior, que ficou em segundo lugar na lista de melhores livros brasileiros de literatura do século 21, organizada pela Folha. Sua avaliação não é totalmente negativa, afinal, caracteriza o livro como "apaixonante, insólito e original" em seu conteúdo. Mas não hesita em dizer que "o autor não tem estilo particular".


Ela o compara a Umberto Eco, cujo "O Nome da Rosa" traduziu. O romance de sucesso global é, para Aurora, uma "obra-prima da arquitetura do conteúdo". No entanto, a professora se junta à parte mais rigorosa da crítica italiana para dizer que o estilo de Eco é "pesado, irregular e não suscita interesse". Sua conclusão é a de que "é muito raro, mas mesmo um autor que tem estilo discutível pode escrever um grande livro se relatar um conteúdo interessante o bastante".


No plano internacional, repete as críticas a Vieira Junior para falar da Nobel de Literatura Annie Ernaux e de Elena Ferrante, duas das mais conhecidas escritoras contemporâneas. Se cativam o público ao falarem de experiências acabrunhantes, como o aborto de Ernaux em "O Acontecimento", ou assuntos de interesse comum, como os anos formativos de Ferrante em "A Amiga Genial", para Aurora, não passam de best-sellers.


Se nenhuma das duas têm estilo o bastante para atrair a professora, a virtude aparece na medida certa na prosa da espanhola Rosa Montero. As apreciações da autora de "O Perigo de Estar Lúcida" movimentam algo de curioso que "dá vida ao seu estilo", mesmo quando escreve sobre o corriqueiro, defende Aurora.


O porquê da tendência conteudista acometer o Brasil, Aurora não sabe pontuar, mas cautelosamente a relaciona ao que classifica como "um exagero" por parte da crítica. "O passado não pode repercutir no presente como estão querendo. Esse fenômeno terrível do passado, a escravidão, não implica merecimentos no presente. É preciso partir da igualdade de condições de conhecimento. Não se pode dar o mérito antes das condições."


Para a professora, muita coisa melhorou no país nos últimos anos, mas a injustiça continua sendo a principal marca do cotidiano brasileiro. "O povo europeu é mais amadurecido, pois passou por guerras e revoluções, então reclama mais. Aqui, o povo é muito passivo."


Ela conta uma anedota de seu pai para ilustrar o ponto de vista. Enquanto diretor de uma fábrica na região de Carrara, ao norte da Itália, ele era constantemente intimidado por operários, que "diziam que sua cova estava pronta" e "ameaçavam dar com o sapato na cabeça dele".


Aurora lembra a história da região, por onde passava a linha gótica, uma das últimas linhas de defesa nazi-fascistas, cujo intuito era bloquear os avanços aliados durante a Segunda Guerra Mundial.


"Esse operariado, muitos deles antigos guerrilheiros, era muito sofrido", por isso combativo, diz. Tão logo foi convidado para dirigir a fábrica de cloro e soda cáustica das indústrias Matarazzo em São Paulo, quando Aurora tinha 13 anos, seu pai foi surpreendido por um operariado que "fazia fila para o abraçar no dia de seu aniversário".


Estabelecida com a família na região do rio Tamanduateí, entre São Paulo e São Caetano do Sul, Aurora logo aprendeu o português e saiu atrás de outro desafio, que encontrou na casa de uma vizinha russa disposta a ensinar-lhe sua língua. Em uma casa na rua Ibitirama, Aurora passou anos da adolescência tomando chá e estudando o livro de gramática russa escrito por Marina Dolenga ao lado da vizinha, com quem passeava pelos bairros de emigrados eslavos para treinar a língua.


Quando foi escolher a faculdade, seu pai logo a proibiu de cursar medicina. "Você vai ser professora, porque tem três meses de férias por ano", dizia. Aurora seguiu para o curso de letras na USP, onde se especializou em literatura anglófona com tese sobre "Ulisses", de James Joyce.


Quase cem livros traduzidos depois, a professora encontrou-se com a prosa de Joyce mais uma vez em 2022, quando participou do Coletivo Finnegans, grupo que, liderado por Dirce Waltrick do Amarante, traduziu "Finnegans Wake" para a editora Iluminuras.


Com o título "Finnegans Rivolta", o livro recebeu o prêmio de melhor tradução no Jabuti de 2023. Em 2004, Aurora já havia ganhado uma menção honrosa no mesmo prêmio, ao lado de Haroldo de Campos, pela tradução da coletânea "Ungaretti: Daquela Estrela à Outra". Também ficou em terceiro lugar em 2007, pela tradução de "Indícios Flutuantes", da poeta russa Marina Tsvetáieva.


Logo que Aurora concluiu o curso de letras, em 1963, o professor ucraniano Boris Schnaiderman inaugurou o bacharelado em russo na USP, para o qual ela seguiu. Foi colega de Augusto de Campos e logo se tornou professora assistente de Schnaiderman. Lecionando literatura russa na universidade pública no meio da ditadura militar, Aurora conta que os colegas foram frequentemente visados pelos militares.


Ela rememora o episódio em que Schnaiderman, tradutor de Dostoiévski, Tolstói e Maiakóvski, estava lecionando quando três militares entraram armados e anunciaram a procura por um aluno.


"Boris, com aquele jeito vagaroso que tinha, disse a eles: 'Os senhores vêm aqui armados de metralhadoras enquanto nós só temos o apagador e o giz." Schnaiderman foi imediatamente levado para o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, o que causou alvoroço na Faculdade de Letras.


Foi Aurora quem teve a coragem de questionar aos militares o que aconteceria com o colega. Ela se aproximou do oficial com ar de ingênua, perguntando a que horas poderia ir apanhar Schnaiderman, ao que indicaram "por volta da meia-noite".


Apesar do desespero da esposa do colega, Aurora consentiu e aguardou: "À meia-noite eu fui buscá-lo no Dops. Cheguei e lá estava ele, vestido de avental branco, na frente do recinto. Nós sofremos muito, mas a juventude nos dava força para continuar", conta.


Por sua contribuição ao estudo da literatura e à tradução, Aurora recebeu em junho o prêmio Ciccillo Matarazzo per Italiani nel Mondo, ao lado do poeta, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi.


Entre os vários projetos aos quais se dedica no momento, ela destaca dois. Para a versão em italiano da biografia do empresário Francesco Matarazzo, escrita por Ronaldo Costa Couto, já comprou quatro cadernos de espiral. Mas a novidade que mais lhe interessa é a publicação da coletânea de ensaios "Em Busca do Quem das Coisas", do escritor, tradutor e ecologista Per Johns.


Os manuscritos herdados por Aurora partem de uma série de palestras realizadas pelo escritor de origem dinamarquesa a convite da ABL e da PUC-Rio. O livro póstumo, editado por ela, reúne pensamentos sobre a literatura — com destaque para Guimarães Rosa, cujo "Grande Sertão: Veredas" Johns cotraduziu, durante cinco anos, para o dinamarquês — e a natureza.


Apontando para o retrato que pintou de Johns, Aurora destaca a importância do livro, que deve sair em breve pela editora Iluminuras. Ela situa o amigo, morto em 2017, "entre os mais dotados escritores de nossa época".


Carolina Azevedo

Jornalista


Foto: Aurora Bernardini, professora aposentada da USP e tradutora, em sua casa, no bairro do Brooklin, na zona oeste de São Paulo - Adriano Vizoni / Folhapress.


FSP 30.08.2025

Amilton Aquino

 Da mesma forma que aconteceu com a bandeira do patriotismo (tradicionalmente associada à direita, mas que acabou caindo no colo do PT diante da patacoada Bolsonaro/Trump), nesta semana o governo Lula marca mais um gol mirando a disputa de 2026 em um tema que sempre relegou: o combate ao crime organizado.


O tempo dirá o quão efetiva será a operação deflagrada e até que ponto o governo está realmente disposto a contrariar sua fama de conivência com a impunidade e com o crime. Mas é preciso admitir: foi um gol de placa na corrida para 2026.


Ora, até a última eleição o PT recebeu quase 100% dos votos vindos dos presídios do país. Do “diálogo cabuloso” ao “diálogo” mais recente que viabilizou um comício de Lula na favela do Moinho em SP (repetindo episódios anteriores envolvendo ministros com livre trânsito em territórios dominados pelo tráfico), passando pelo intocável “bolsa-presidiário”, não faltam motivos para os criminosos preferirem o PT no poder.


Mas eis que, de repente, o mesmo governo que na semana passada rejeitou um projeto para enquadrar o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas, e cuja principal proposta na área de segurança é o projeto Pena Justa — voltado sobretudo a melhorar as condições carcerárias e combater supostas “violações de direitos humanos” (as mesmas bandeiras de ONGs com boas relações com o crime organizado e que fazem lobby descarado em Brasília) — aparece nas manchetes como o grande desarticulador do PCC! Melhor ainda: associando-o à Faria Lima e, de quebra, ao deputado Nikolas Ferreira!


Pois é. Hoje existem cerca de R$ 10 trilhões distribuídos em milhares de fundos imobiliários no Brasil. Mas o envolvimento de alguns fundos em operações criminosas, somando R$ 30 bilhões, já basta para o governo colar a pecha em todo o setor, reforçando seu velho discurso de rico contra pobre.


Como o próprio Lula já admitiu em mais de uma ocasião, tudo é uma questão de narrativa. E, nesse campo, o demiurgo petista reina absoluto. É sintomático que o atual ministro da Justiça, o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski — patrono das famigeradas audiências de custódia, símbolo maior da impunidade brasileira — venha a público capitalizar politicamente uma operação conjunta da PF com os órgãos de segurança de São Paulo. Detalhe: seu filho é advogado de uma das empresas pegas na operação, a Terra Nova Trading! Aliás, também de um dos sindicatos fraudadores do INSS.


O que dirá o ministro sobre tais conexões? Coincidência? Que foi “surpreendido” pela descoberta? Ou será que ele próprio foi pego de surpresa pela evolução das investigações e resolveu, de última hora, surfar a onda, como aponta o governador Tarcísio de Freitas, que também reivindica os louros da operação?


Certeza mesmo só que o governo vai tentar caçar o mandato do deputado Nikolas por “fake news”. Até lá, aguardemos os arranjos garantistas para assegurar todos os direitos possíveis aos chefões do PCC, se possível com a devolução do dinheiro roubado — como já aconteceu com corruptos confessos da Lava Jato e até com o tráfico, caso do célebre André do Rap.


Enquanto isso, os filhos dos chefes do PCC e do Comando Vermelho continuarão posando de artistas, sendo ovacionados e normalizados pela mídia de viés esquerdista e até por ministros do STF, como Barroso, que chegou a participar do documentário O Grito ao lado do “rapper” Oruam, defendendo o desencarceramento e a liberdade de seu pai assassino.


Enfim, nada mais adequado para simbolizar o momento atual do que o mapa-múndi invertido apresentado no ano passado pelo tresloucado presidente do IBGE. E, de narrativa em narrativa, seguimos rumo a mais um circo eleitoral.

Julgamento de Bolsonaro

 *JULGAMENTO DE BOLSONARO DOMINAM A SEMANA – MC 01/09/25*

*Por Anderson Nunes – Analista Político*


Os holofotes se voltam para Brasília, onde o início do julgamento de Jair Bolsonaro no STF define o tom de uma semana decisiva para a política e a economia.


*MERCADOS EM MODO DE ESPERA*


Mercados internacionais operam em ritmo lento com o feriado do Dia do Trabalho nos EUA e Canadá. No Brasil, as atenções se voltam para a divulgação do PIB do segundo trimestre amanhã e novos preços de combustíveis que entram em vigor hoje. 


*O FOCO NO EMPREGO AMERICANO*


Com os mercados em compasso de espera pelo feriado nos EUA, a agenda da semana é dominada por dados de emprego, como o payroll. Os números serão decisivos para calibrar as apostas sobre os próximos cortes de juros pelo Federal Reserve.


*O JULGAMENTO NO SUPREMO*


A Primeira Turma do STF inicia amanhã o julgamento do ex-presidente pela acusação de tentativa de golpe. A primeira fase se concentrará na leitura da denúncia e das defesas, sem previsão de votos dos ministros. O veredito é visto como um gatilho para novas sanções dos EUA contra o Brasil.


*TENSÃO DIPLOMÁTICA*


O governo Lula intensifica o confronto com Trump ao acionar a Lei da Reciprocidade contra as tarifas americanas. A medida eleva a apreensão do mercado, que teme uma retaliação ainda mais dura de Washington, especialmente com o início do julgamento de Bolsonaro.


*ORÇAMENTO SOB CRÍTICA*


O Projeto de Orçamento de 2026, enviado ao Congresso, é recebido com ceticismo por economistas. As projeções de receita são consideradas superestimadas, colocando em dúvida o cumprimento da meta fiscal para o próximo ano.


*HADDAD DEFENDE AGENDA ECONÔMICA*


O ministro da Fazenda, Fernando Haddad defende a isenção do Imposto de Renda para salários de até R$ 5 mil. A aprovação da medida, contudo, depende de uma articulação política complexa no Congresso em meio ao clima tenso.


*CPI MIRA EX-MINISTROS*


A CPI do INSS avança sobre ex-ministros do governo e promete uma semana de pressão política. A comissão define hoje os próximos depoentes, com Carlos Lupi sendo o mais cotado para iniciar os trabalhos. 


*CONGRESSO AVANÇA CONTRA FRAUDES*


O Congresso reage a operações contra fraudes em combustíveis e deve votar o projeto que tipifica o “devedor contumaz”. A medida visa a combater esquemas de sonegação fiscal usados como modelo de negócio. 


*RADAR CORPORATIVO*


1. GPA: A família Coelho Diniz, agora com 24,6% das ações, irá propor uma nova chapa para o conselho de administração, buscando consenso com os demais acionistas, incluindo o grupo francês Casino.

2. PETROBRAS: O Conselho de Administração aprovou Cristina Bueno Camatta para a ouvidoria-geral da companhia, segundo informações do mercado.

3. SABESP: O nível dos reservatórios que abastecem São Paulo atingiu o menor volume para o período desde a crise hídrica de 2015, registrando 37,2%.

4. EMBRAER: A decisão da empresa de retomar o trabalho presencial por três dias na semana é alvo de uma ação coletiva movida pelo Sindicato dos Metalúrgicos.

5. NATURA: A gestora BlackRock reduziu sua participação na empresa de 5,09% para 2,51%, vendendo uma fatia significativa de suas ações.

6. IGUATEMI: A empresa vendeu sua participação no Shopping Pátio Higienópolis para um fundo imobiliário por R$ 169,9 milhões.

7. LOJAS MARISA: O conselho aprovou novas emissões de notas comerciais no valor total de R$ 152,9 milhões para reforçar seu caixa.

8. SINQIA: A companhia sofreu um ataque hacker em seu ambiente de transações PIX, com relatos não confirmados de desvios milionários.

9. ENERGISA: A empresa anunciou a aquisição facultativa de debêntures de diversas séries, com prazo para manifestação de interesse até 15 de setembro.

10. Túnel Santos-Guarujá: Concorrentes entregam hoje as propostas para o leilão do túnel de R$ 6,8 bilhões. A disputa final ocorre na sexta-feira na B3. 

11. iFood e Mottu: As empresas se unem para oferecer aluguel de motos para entregadores. O programa visa a facilitar o acesso ao veículo de trabalho com descontos e planos diários. 

12. Stellantis: A montadora inicia um regime de jornadas reduzidas para 1.800 funcionários na Itália. A medida reflete a fraqueza do mercado e o impacto de tarifas norte-americanas. 


O Canal Auxiliando usa as seguintes fontes de notícias: ‘Monitor do Mercado, BDM, Broadcast, Valor Econômico, Folha de São Paulo, Estadão, O Globo, BM&C, B3, Revista Oeste, Poder 360, Money Times, Agência CMA, Agência Brasil, Bloomberg, Infomoney, CNN, The Washington Post, The Wall Street Journal, Fox Business, Reuters, Oil Price, Investing e Yahoo Finance’.

O último refúgio dos canalhas

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*O último refúgio dos canalhas está cheio*


_Na guerra dos patriotas de fancaria, perdemos todos. Enquanto lulopetismo e bolsonarismo se engalfinham para definir quem é mais brasileiro, os patriotas de verdade só querem um governo decente_


Se o patriotismo “é o último refúgio dos canalhas”, como diz o escritor inglês Samuel Johnson (1709-1784), então esse refúgio está lotado no Brasil. Lulopetistas e bolsonaristas andam se esmerando em transformar esse sentimento de pertencimento a uma comunidade nacional em arma política para fins eleitorais.


Em reunião anteontem, o presidente Lula da Silva e seus ministros apareceram com um boné azul em que se lia “O Brasil é dos brasileiros”, um constrangedor contraponto governista aos bonés vermelhos Make America Great Again (“Torne a América grande novamente”), o movimento político nacionalista liderado pelo presidente dos EUA, Donald Trump. Ainda estamos a mais de um ano da eleição presidencial, mas já é possível antever que essa patacoada será o grande mote do lulopetismo na campanha.


O patriotismo fajuto que Lula abraçou não tem qualquer relação com os reais interesses e necessidades da Pátria. Ao presidente e seus marqueteiros só interessa explorar eleitoralmente o elo afetivo dos brasileiros entre si e deles com o lugar em que nasceram ou escolheram viver, no momento em que o Brasil é agredido pelos EUA de Trump. No limite, Lula quer se confundir com a própria ideia de pátria, e não à toa, na reunião ministerial, a título de reafirmar sua disposição para defender o Brasil contra os EUA, leu um discurso de Getúlio Vargas, o autocrata que quis inventar uma identidade brasileira moldada conforme seus propósitos autoritários. Nesse discurso, Vargas denunciava “forças internacionais” que se uniram aos “eternos inimigos do povo humilde”, que “procurarão, atingindo minha pessoa e o meu governo, evitar a libertação nacional e prejudicar a organização do nosso povo”.


Como se percebe, Lula se vê como Vargas, isto é, como a própria personificação do Brasil e de seu povo – donde se conclui, conforme essa retórica, que qualquer ataque a Lula equivale a crime de lesa-pátria cometido por traidores do Brasil. Não é à toa que o slogan do governo, apresentado na reunião, passará a ser “Do lado do povo brasileiro”, que substituirá o “União e reconstrução”. Em vez de união, o lulopetismo agora quer que se escolha um lado – o do “povo brasileiro”, obviamente encarnado em Lula.


Enquanto isso, “patriotas” bolsonaristas, que há anos prejudicam o País, esmeram-se em criar uma crise sem precedentes no Brasil a título de livrar Jair Bolsonaro da cadeia. Nesse sentido, Bolsonaro, como Lula, também se considera a própria encarnação do Brasil, e mobilizar uma força estrangeira – o governo americano – para pressionar magistrados tidos como inimigos do ex-presidente seria, na verdade, um gesto para salvar o País e a democracia brasileira. O Leitmotiv golpista é, portanto, evidente.


Nenhuma surpresa. O brado retumbante de Jair Bolsonaro – “Brasil acima de tudo” – é tão verdadeiro quanto uma nota de três reais. Dono de um próspero empreendimento familiar, dedicado a fazer dinheiro com rachadinhas e afins sob a proteção de mandatos políticos, Bolsonaro nunca se importou com partidos, com o decoro parlamentar, com a Constituição ou com o Brasil. Seu propósito sempre foi e continua a ser a exploração do ressentimento de eleitores insatisfeitos com a política para acumular patrimônio pessoal. Bolsonaro, que jamais respeitou a farda militar que um dia vestiu e que foi capaz de conspurcar seguidamente o 7 de Setembro, invoca o patriotismo não no sentido de inspirar união e orgulho, e sim com o objetivo de semear o antagonismo, do qual extrai votos e poder.


Nessa guerra entre patriotas de fancaria, perdemos todos. De um lado, temos um entreguista que, com a expectativa de safar-se da cadeia, pôs-se a serviço de um governante estrangeiro que humilha o Brasil como quem dá um peteleco numa mosca. De outro, temos um contumaz oportunista, convencido de ter encontrado a fórmula para ganhar mais um mandato presidencial sem a necessidade de apresentar programas de governo e soluções efetivas para os reais problemas brasileiros. No meio dos dois estão os brasileiros que amam seu país e só querem um governo decente."

Fabio Alves