O SEGREDO DOS SEUS SONHOS
Sonhos estão aí para serem decodificados ‘antes que seja tarde demais’, alerta filósofa francesa.
Em ‘A inteligência do sonho’, Anne Dufourmantelle faz uma análise histórica e filosófica
Por Norma Couri — para o Valor, de São Paulo
26/08/2025
As civilizações antigas nunca desprezaram os enigmas dos sonhos, seja em tempos de guerra ou de paz. Eles podem contornar as censuras internas do sonhador e mostrar aquilo que sempre receamos de pior.
A filósofa e psicanalista francesa Anne Dufourmantelle lançou “A inteligência do sonho: Fantasia, aparições, inspiração”, seu 15º livro, em 2012, e mais 5 depois. A edição brasileira está sendo lançada neste ano.
Em 2017, enquanto nadava numa praia perto de Saint-Tropez, o mar se agitou, e ela morreu ao tentar salvar duas crianças a 50 metros de onde estava. Tinha 53 anos. As crianças foram resgatadas com vida. Sua morte confirma o velho adágio de que filosofar é aprender a morrer. Em 2011, a autora havia lançado “Éloge du risque” (Elogio do risco).
“A inteligência do sonho” é dedicado “para aqueles que sabem o que os sonhos podem fazer” e adverte, como o Talmude, que “um sonho não decifrado é como uma carta que lhe é endereçada e você não abre”. O recado está dado: o sonho está aí para ser decodificado “antes que o corpo adoeça, antes que o acidente sobrevenha, antes que seja tarde demais”.
Visões do divino, oráculos sobre o futuro ou delírios fazem parte das aventuras medievais de Lancelot ou do amor de Dante e Beatriz na “Divina Comédia”. Alucinações perturbam o Cavaleiro de Triste Figura, Dom Quixote, criado por Miguel de Cervantes na Espanha do século XVII.
Os gregos antigos acreditavam que os sonhos eram mediadores entre deuses e humanos. Os indígenas levam o sonho a sério nos ritos de iniciação e consideram das mais perigosas a viagem nesses territórios.
Os sonhos podem ser presságios, acontecer com a doçura dos trovadores ou com o gozo interdito da imaginação erótica. São tão reveladores que, em 1215, durante o Quarto Concílio de Latrão convocado pelo papa Inocêncio III, a confissão dos sonhos dos fiéis tornou-se obrigatória como prova da retidão do caráter.
O livro de Anne Dufourmantelle faz uma leitura histórico-filosófica sobre o sonho e alerta contra o esquecimento: “O sonho é um enigma tão importante quanto o da memória”, abre uma janela para nós durante a noite, pode iluminar uma vida. Sua “inteligência” supõe uma inversão entre lucidez e razão, anuncia um mundo por vir do qual ainda não nos tínhamos dado conta.
Um dos capítulos relembra a dissidência entre o criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), que via nos sonhos o recalque dos desejos na dualidade entre a pulsão da morte e o princípio do prazer, e seu então discípulo preferido, Carl G. Jung (1875-1961), para quem os sonhos portavam arquétipos de uma memória coletiva.
“O que leva o sujeito a crescer ou a se autodestruir?” Dufourmantelle lembra que, para Freud, cada detalhe do sonho importa. O núcleo central do sonho esconde-se sob uma charada. Ela cifra nosso desejo reprimido que também “apaga” cenas traumáticas.
Lewis Carroll (1832-1898) matou a charada em “Alice no País das Maravilhas” (1865) quando o espelho deformante diz a verdade. O sonho é esse espelho. Inverte códigos, obriga o confronto com o nonsense, mas a autora garante que ele é decifrável. E libertador se interpretado numa psicanálise, porque não existe descoberta do sonho sem relato, sem a escuta.
A revelação da verdade passa por nossos abismos. Acidentes, amores frustrados, lutos. O confronto só acontece “quando o real lhe perfura a alma”, ela diz. As fantasias, os medos, os pavores do desejo nos protegem desse real e dá forma a figuras imateriais. Esses mensageiros cumprem a função de mediadores para atingirmos a inteligência criadora que torna possível uma virada de vida, a experiência do corpo erótico. “Quisemos que os anjos nos aparecessem, já que Deus, dizem, não responde. Esse silêncio assombra o mundo.”
Premonição ou não do que lhe aconteceria cinco anos depois, Dufourmantelle escreve sobre a morte. “Por que morremos assim? Por que vivemos tão pouco?” Para a psicanalista, a música e a inspiração são versões da transcendência tão íntimas como a linguagem do sonho, mas ao situar as vozes persecutórias no mesmo patamar, ela cita a loucura que acometeu o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) aos 44 anos. “A loucura vem como um socorro diante da lâmina afiada do real para uma sensibilidade viva demais.”
Para enfrentar uma perda que traz angústia, depressão, temos de ir ao seu encontro. Freud escreveu que “recalca-se uma criança como se respira”. É preciso muita coragem para ouvir o que dizem os sonhos. A autora nos convida a acreditar no seu poder mágico de metamorfosear fragilidades em força e liberdade.
Este livro nos aponta o sonho como um procedimento subversivo de informação. Pode mudar uma vida. Dufourmantelle cita Blaise Pascal (1623-1662), que ao ler o Evangelho de João, capítulo 17, sofre uma conversão. O cientista francês escreve essa epifania como o relato de um sonho, e o costura no interior de sua jaqueta para nunca se esquecer dele. O relato que o acompanhou até o fim da vida só foi descoberto depois de sua morte. É dele a frase “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
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