"Opinião
Lula não tem chance no 'saldão' das universidades norte-americanas
Raul Juste Lores Colunista do UOL
27/05/2025 05h30 Atualizada em 27/05/2025 15h08
O governo Lula quer atrair acadêmicos dos EUA para fazer pesquisas aqui, aproveitando a caça às bruxas contra as universidades promovida por Trump. Dificilmente terá sucesso.
Infelizmente para o governo, o anúncio marqueteiro coincidiu com a notícia de que repasses federais às universidades sob Lula já estão abaixo dos repasses sob Temer e Bolsonaro. Mesmo com a militância domesticada e silenciada, a Academia Brasileira de Ciências e a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) acusaram o governo de "desmonte" das universidades.
Pior ainda, a proposta do governo, anunciada pelo ministro Alexandre Padilha, mostra que os governos petistas ainda não têm a menor ideia do que seja internacionalização da isolada academia brasileira. Para começar, Padilha falou em priorizar cientistas brasileiros que queiram sair dos EUA. Ou seja, resgatar os poucos brasileiros com acesso às pesquisas mais desenvolvidas do mundo. Onde há colegas e professores do planeta inteiro, e a colaboração entre empresas e universidades é permanente.
Como não é a primeira vez que Padilha é ministro, deve saber o quão lento, demorado e caro é para um pesquisador brasileiro importar uma substância, um material, um laboratório de fora. Se for para sair dos EUA, por que um pesquisador de ponta voltaria para um ambiente ainda mais isolado e onde o governo coopera ainda menos que o de Trump?
Harvard tem 27% de estudantes e mais de 20% dos seus professores nascidos fora dos EUA. Nenhuma universidade federal brasileira tem mais de 1% de estudantes estrangeiros, e boa parte deles é apenas intercambista. Professores estrangeiros? O número é menor ainda. Se você pode levar um ano para conseguir um CPF e alugar um imóvel no Brasil sem fiador ou CPF, imagine para o cientista indiano ou turco que quisesse se aventurar no Brasil? Aulas de graduação em inglês? Onde?
Nossas universidades são isoladas e corporativistas, e jamais tiveram muito apetite para atrair o mundo para suas salas. Como o PT já está na metade de sua quinta gestão federal, tal interesse poderia ter começado antes de Trump. Estamos muito despreparados para o saldão.
Que programa foi criado para aumentar a transparência e melhorar a governança das universidades federais? Para que ex-alunos doem sem achar que o dinheiro sumirá em um buraco negro? Algum reitor criou programas de arrecadação independentes de verbas de Brasília?
Até para fazer bravata, o governo brasileiro chegou tarde no bonde. Apesar do discursinho pró-Brics, poderiam checar o que a China fez nos últimos vinte anos.
Quando fui correspondente da Folha na China, entrevistei o ex-reitor da Universidade Cornell, Jeffrey Lehman. Ele tinha acabado de se mudar para dirigir a novíssima Faculdade de Direito Transnacional da Universidade de Pequim. Recebeu tapete vermelho e um pacote financeiro irrecusável, para uma faculdade onde todas as aulas eram em inglês.
Em 2012, o programa "Mil Experts Internacionais" foi lançado pelo governo chinês para subsidiar universidades chinesas que conseguissem atrair acadêmicos de prestígio do exterior, especialmente americanos. Em 2024, são estimados 18 mil professores estrangeiros nas universidades chinesas, a maioria americanos. De convidados e assistentes a efetivados. Lecionando em inglês, algo que causaria imolações nas nossas universidades públicas.
O mundo poderia estar perdendo tempo ao publicar manifestos ou notas de repúdio contra o presidente que só teve sucesso na vida como apresentador de reality show (e quebrou quase todos os negócios em que entrou, inclusive os que herdou).
Mas quanto mais Trump ameaça universidades e persegue cientistas no próprio governo, Europa, Ásia, Canadá e Austrália tiram o carrinho da garagem e fazem as mais variadas ofertas para importar o saber americano.
Até a habitual modorra da União Europeia foi chacoalhada. O presidente francês, Emmanuel Macron, e a chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, lançaram pacote de 500 milhões de euros para atrair cientistas americanos. Sem dissimular. O programa, em inglês, significa "Escolha a Ciência, escolha a Europa". Espanha e Alemanha também divulgaram que farão programas para atrair talentos acadêmicos.
Como muitos dos cientistas americanos não são nascidos no país, podem facilmente se mudar para um centro de pesquisas onde se sintam mais bem-vindos. Muitos chineses, por exemplo, estão voltando para a China, graças ao novo clima. Trump ainda vai deixar as universidades chinesas mais competitivas.
Universidades na França e no Canadá lançaram uma ofensiva de charme para contratar cientistas e intelectuais americanos de renome, que estejam sem paciência para o bullying de Trump. Yale perdeu três de seus maiores intelectuais para Toronto nas últimas semanas: Timothy Snyder, Marci Shore, Jason Stanley. E esse governo chegou apenas a seu quarto mês.
O novo ministro da Saúde dos EUA, Robert Kennedy, demitiu alguns dos maiores cientistas americanos do NIH, o instituto federal de pesquisas cientificas. Kennedy é contrário até mesmo a vacinas contra sarampo e rubéola, que têm bons resultados confirmados há décadas —54 cientistas abandonaram (ou foram "saídos") o NIH.
Elon Musk, em seu teatrinho —já interrompido— de cortar gastos federais, também demitiu pesquisadores na Agricultura e na Educação. Imagine a Embrapa sendo ceifada por neófitos no assunto? A globalização competitiva, a mesma que Trump e nossos desenvolvimentistas sempre atacaram, dá vitórias aos mais espertos.
Em 2002, a cidade Yiwu, no Sudeste chinês, então com 100 mil habitantes, era um dos principais centros atacadistas da China. Seus comerciantes descobriram que estava cada vez mais difícil para empresários árabes, do Oriente Médio ou para qualquer barbudo de pele morena em geral conseguir um visto para os EUA. O trauma do 11 de Setembro foi aproveitado pela mercantil Yiwu.
Yiwu não só abriu um escritório de promoção em Dubai, que já se firmava como hub do Golfo, como o Partido Comunista de Yiwu decidiu patrocinar a construção de uma mesquita com capacidade para 5.000 fiéis "se sentirem em casa".
Yiwu cresceu graças a essa antena muito ligada com o mundo. Hoje tem 2 milhões de habitantes e virou o maior centro atacadista do país. O atacadão de 340 mil metros quadrados de 2002 virou uma central interminável de 6,4 milhões de metros quadrados —ou quase 30 vezes o Ceagesp. Tem 80 mil vendedores em suas centenas de lojas, e 210 mil visitantes por dia (5.000 deles estrangeiros).
Turismo sem fronteiras
Na última vez em que o governo brasileiro fez de conta que queria internacionalizar a educação brasileira, lançou o Ciências sem Fronteiras, no governo Dilma Rousseff, em 2011.
De 2011 a 2016, mandou 104 mil universitários da graduação e gastou R$ 13 bilhões à época (em valores de hoje, mais que o dobro). Quase metade dos alunos foi para países como Portugal, Espanha e Argentina. Uma boa parcela dos estudantes que passaram seis meses nos EUA —sim, um único semestre para estudantes em início de vida acadêmica— não tinha domínio do inglês.
O governo Dilma jamais se preocupou em avaliar o resultado do programa. Quantos voltaram tendo feito alguma pesquisa fora? Quantos voltaram com o idioma melhor? Quantos se empregaram melhor depois de terminada a graduação?
Quantos ficaram só se divertindo, nos tenros 19, 20 aninhos, sem a supervisão dos pais e professores?
Ao mesmo tempo, a China anunciou a isenção de vistos a cidadãos de cinco países latino-americanos, incluindo o Brasil, para visitas de até um mês.
Quando milhões de turistas do mundo inteiro pensam duas vezes se vale a pena enfrentar perrengues com os brucutus dos aeroportos americanos, a China corre para tentar lucrar em cima.
Prejuízo provinciano
Trump quer reduzir o dinheiro público nas universidades privadas e intervir na política interna delas, movido por ressentimento intelectual, compartilhado por seus seguidores. Acusa as instituições de serem tolerantes com o antissemitismo e de serem bastiões do esquerdismo esnobe.
Mas Trump aceitou um avião de presente, avaliado em US$ 400 milhões, pela ditadura do Qatar, principal financiadora do Hamas. Na última semana, dois filhos de Trump anunciaram um mega resort com campo de golfe no Qatar, orçado em US$ 5 bilhões. A ditadura anti-Israel entra com o dinheiro, a família Trump, com a marca, e os republicanos fingem não haver conflito de interesses.
Para não se ter dúvidas sobre o compromisso do Donald com direitos humanos e civis, ele acusou o governo da África do Sul de "racismo" contra fazendeiros brancos. E sobre o longo apartheid? Nem um pio.
Mas e o Brasil nessa? A culpa não é só do governo federal, obviamente. Ele apenas espelha algo mais amplo no país todo. Nossa elite empresarial, política e midiática costuma ser tão monoglota quanto nossas universidades. Patrocinam convescotes em Harvard e em Nova York só com brasileiros, para não ter a obrigação de balbuciar em inglês. Mas preferem mesmo longas temporadas em Portugal ou na Flórida.
Networking só entre gente que frequenta celeiros intelectuais como Fazenda Boa Vista e Trancoso. Até nossas estrelas da "renovação política" não perdem um trem da alegria para falar para as mesmas pessoas que encontrariam na Fiesp ou na Faria Lima.
O que isso significa? Quando o bloco soviético virou pó no final dos anos 80 e início dos 90, Europa e EUA ganharam, de graça, pelo menos 50 mil cientistas acadêmicos russos, ucranianos, poloneses e uma longa lista. O Brasil da hiperinflação e do Plano Collor nem tinha como entrar nessa liga.
E o saldão das universidades americanas e dos centros de pesquisa já começou, mas nossa moeda intelectual continua desvalorizada. Assistiremos de longe."
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