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EDITORIAL. **A perseguição a Ives Gandra e o papel da OAB*



Nem mesmo Kafka imaginaria um enredo tão

absurdo quanto o enfrentado pelo jurista Ives

Gandra Martins, acusado, sem qualquer

fundamento, de suposta incitação a golpe de

Estado. 


O jurista, aos 90 anos, enfrenta desde

2023 uma representação aberta pela Associação

Brasileira de Imprensa (ABI) e pelo Movimento

Nacional dos Direitos Humanos (MNDH) no

Tribunal de Ética e Disciplina da seccional

paulista da Ordem dos Advogados do Brasil

(OAB-SP), sob a alegação de que teria inspirado os

atos de 8 de janeiro de 2023 por meio de um

e-mail escrito em 2017.


A mesma representação já havia sido analisada

pela OAB. Em dezembro de 2023, a 6ª Turma do

Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP concluiu

que o jurista não cometeu infração. As autoras

recorreram, mas a 8ª Câmara Recursal da OAB-SP

decidiu manter o julgamento sem sequer analisar

o pedido de recurso, arquivando o caso em

fevereiro deste ano por considerar que o recurso

foi apresentado fora do prazo. Mais uma vez, a

ABI e o MNDH recorreram, e o caso voltou a

julgamento. 


Nesta semana, um pedido de vista

apresentado por um dos conselheiros da OAB-SP

suspendeu a análise do novo recurso.


O respeito ao debate constitucional

– ainda que envolva interpretações

complexas e sensíveis – é condição

essencial para a preservação da

democracia. 


Transformar juristas em réus por suas ideias é repetir os

vícios dos regimes autoritários, que

perseguiam pensamentos


A fantasiosa representação contra Gandra

baseia-se em um documento encontrado no

celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O documento é, na verdade, uma

troca de e-mails ocorrida em 2017, na qual o

advogado, conhecido por seu profundo saber

constitucional, foi procurado por um major do

Exército para responder a questões sobre a

“elucidação jurídica do que caracteriza a garantia

dos poderes constitucionais”. Em sua resposta,

Gandra apresentou uma interpretação técnica

sobre o artigo 142 da Constituição Federal,

semelhante à publicada em um livro de 2014

escrito por ele e outros autores em homenagem

ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),

Gilmar Mendes.


Em nenhum momento Gandra trata ou defende

uma ruptura da ordem institucional. Em sua

intensa produção intelectual, que inclui artigos

de opinião, análises acadêmicas e livros, o jurista sempre defendeu com firmeza o respeito à

Constituição, jamais tendo se posicionado a favor

de uma ruptura do Estado Democrático de

Direito. 


Ainda que algumas pessoas possam, de

fato, ter se apropriado da interpretação de Gandra

e a utilizado – seja por ignorância, seja por má-fé

– para defender uma absurda intervenção militar

após a eleição de Lula, é ridículo querer impingir

ao jurista qualquer responsabilidade pelo

lamentável episódio do 8 de janeiro. Só uma falta

extrema de bom senso e sensibilidade justificaria

tal aberração.


A perseguição a Ives Gandra – não há outra

forma de nomeá-la – é reflexo de uma atmosfera

de histeria coletiva, na qual ideias e

interpretações legítimas são constantemente

alvo de tentativas de criminalização. Essa

atmosfera é alimentada, em parte, pela atuação

desastrosa do Judiciário brasileiro no episódio do

8 de janeiro. 


Como já mencionamos outras vezes

neste espaço, aquele foi um acontecimento de

extrema gravidade que, se devidamente punido,

poderia ter servido para reforçar na sociedade a

importância de defender a democracia em sua

totalidade. No entanto, transformou-se em

pretexto para que liberdades e garantias

democráticas fossem ainda mais agredidas no

país.


Uma acusação tão esdrúxula quanto a enfrentada

por Ives Gandra – de que uma interpretação

técnico-jurídica feita em 2017 incitou uma

suposta tentativa de golpe em 2023 – só poderia

prosperar em um ambiente em que o respeito à

liberdade de pensamento e opinião é

constantemente escamoteado sob o pretexto da

defesa da democracia. Ironicamente, esta só pode existir plenamente em um contexto onde reine a

liberdade de expressão e opinião.


Que haja entidades ou grupos dispostos a

distorcer um estudo jurídico sobre norma

constitucional, realizado por um professor de

Direito, para transformá-lo em pseudo-base

teórica de um golpe de Estado não surpreende.

Mas que a OAB – cuja missão é zelar pela

advocacia e pela integridade do Direito – se

preste ao papel de acolher representações tão

descabidas, ainda mais contra um homem como

Gandra, com quase 70 anos de vida dedicados ao

Direito e à defesa da democracia, é inaceitável.


Seu legado de inestimável saber jurídico não

pode ser manchado por uma perseguição que

afronta a própria razão de ser da OAB.


A Ordem não pode se curvar a servir de

instrumento de perseguição, atendendo a

investidas de quem tenta subverter a ordem

jurídica em nome de seus próprios interesses.

Ives Gandra não pode continuar sendo

constrangido a se explicar por suas

interpretações – que são absolutamente

legítimas concorde-se ou não com elas. 


Cabe à OAB, como instituição responsável por zelar pela

advocacia e pelo livre exercício do pensamento

jurídico, reconhecer o erro de admitir

representações infundadas como a movida

contra Ives Gandra Martins.


O respeito ao debate constitucional – ainda que

envolva interpretações complexas e sensíveis – é

condição essencial para a preservação da

democracia. 


Transformar juristas em réus por

suas ideias é repetir os vícios dos regimes autoritários, que perseguiam pensamentos.


Defender Gandra é defender o direito de pensar

livremente, de interpretar a Constituição e de

contribuir com o pensamento jurídico nacional

sem medo de represálias. A democracia não se

sustenta sem liberdade, nem o Direito sem

independência.

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