Estadão: A 'bolha' do futebol brasileiro vai estourar
São Paulo, 07/03/2025 - Medida que poderia ajudar a equilibrar o futebol brasileiro, o fair play financeiro não avançou no País, mas o debate segue intenso. É comum ver dirigentes de alguns dos principais times da primeira divisão comentando sobre o assunto, especialmente após os altos gastos dos clubes na última janela de transferências. O Estadão entrou em contato com os 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro para saber o posicionamento de cada um sobre o tema.
Questionados se são a favor da implementação do fair play financeiro no Brasil, todos os clubes ouvidos pela reportagem afirmaram ser favoráveis a uma regulamentação. Ao serem questionados sobre de que maneira a regra deveria aplicada, as respostas foram diversas. Algumas hipóteses citadas foram limitar gastos de maneira proporcional à receita, veto à inscrição e contratação de atletas como punição a pendências financeiras, além de um estudo para a implementação de regulamento condizente com o mercado nacional. Bahia, São Paulo e Vasco foram os únicos a não responder.
Uma das dirigentes mais poderosas do País, Leila Pereira, presidente do Palmeiras, defende com veemência a regulamentação. “Se depender dos clubes, não vamos ter isso (regulamentação), porque vários agem de maneira irresponsável. Dirigentes deixam dívidas para os seus sucessores e não acontece nada. Luto para que tenhamos mais investimentos no nosso futebol. Sonho para que venha a regulamentação, o fair play financeiro, para que dirigentes mal-intencionados sejam punidos”, disse ela recentemente.
Times da primeira divisão movimentaram aproximadamente 540,5 milhões de euros (cerca de R$ 3,3 bilhões) em transferências na janela encerrada no último dia 28, maior valor já registrado no Brasil. Paulo Bracks, diretor executivo do Atlético-MG, demonstrou preocupação com o aumento das cifras e fez uma alerta: “A bolha vai estourar”.
“Há clubes fazendo investimentos que não têm condições. E pela falta de fair play financeiro, o papel aceita tudo. Mas essa bolha vai estourar. E o Atlético vai estar pronto quando essa bolha estourar. Os investimentos estão acima de um nível que se esperava para o futebol brasileiro, os salários estão acima do que se esperava e o mercado brasileiro entre clubes tem gerado negociações que até três, cinco anos atrás eram impensáveis”, comentou o dirigente, em entrevista coletiva.
O economista Cesar Grafietti, referência no País sobre o tema, concorda que há uma bolha no futebol nacional e que ela vai estourar em algum momento. Ele destaca que o movimento acontece porque naturalmente uns clubes podem gastar mais do que outros, enquanto os demais gozam de incentivo adicional pela entrada de dinheiro extra incomum por patrocínios de casas de apostas, além de algumas SAFs que estão aportando valores sem lastro para deixar equipes competitivas.
“A bolha vai estourar, isso é fato”, sentencia o economista. “Já enxergo que os números de 2024 serão muito ruins do ponto de vista de resultado e dívida, e 2025 será ainda pior. Não adianta todo mundo gastar o que não tem porque o resultado será sempre prejuízo e aumento de dívida. O que Flamengo e Palmeiras fazem é justificável. O Bahia também, porque é do Grupo City, que tem muito dinheiro. Os outros, não, porque ninguém tem todo esse dinheiro. Só que eles se sentem na obrigação de ‘correr’ para acompanhar esses que têm mais condição”, explica Grafietti.
Em resumo, o fair play financeiro tem como objetivo manter “o equilíbrio da indústria do futebol por meio da saúde financeira dos clubes”, explica ele. Boas práticas incluem não atrasar o pagamento de salários e encargos trabalhistas, recolher impostos em dia e evitar o acúmulo desenfreado de dívidas. A ideia nasceu há cerca de 15 anos na Europa, após a Uefa ver clubes de maior investimento ficarem em débito com outros mais modestos, que, por sua vez, não conseguiam manter suas operações estáveis.
Sem citar nomes, Grafietti diz que são irresponsáveis os dirigentes que contratam atletas com salário alto, de mais de R$ 1 milhão, e que não estariam em nenhum top 100 de receita em ligas mais fortes da Europa. “É um sinal claro de que perdemos a mão e estamos gastando demais com jogadores que não têm espaço em mercados que teriam a capacidade de pagar.”
LIMITE DE GASTOS. Existem diferentes modelos de fair play financeiro aplicados nas principais ligas da Europa. Recentemente, Everton e Nottingham Forest foram punidos com perdas de pontos na Premier League por apresentarem déficits financeiros superiores ao permitido pela liga inglesa em um período de três anos. Na Espanha, LaLiga segue um caminho parecido com o da Uefa, limitando 45% dos gastos da receita com salários, e planeja aumentar a margem para 70% na temporada 2025/26.
Grafietti diz que existem diferentes condições e características entre os clubes no Brasil pelo fato de um modelo de fair play financeiro não ter sido implementado anteriormente. Assim, ele aponta que o controle de gastos em relação à receita deva ser um dos pilares do regulamento, mas destaca que a limitação dos gastos poderia estar associado a um controle das dívidas.
“Por que eu preciso limitar o Fortaleza, que é um clube praticamente sem dívidas, a gastar 70%, 80% da sua receita se ele não tem mais nenhuma obrigação? Ele poderia gastar até 95% se suas dívidas estivessem zeradas ou próximas disso. Já o Corinthians, que tem R$ 2,4 bilhões de dívida, eu não posso deixar ele gastar 70% da receita porque ainda vai ter as dívidas para cobrir. Se ele não vai cobrir, as dívidas vão continuar crescendo e gerando problemas”, sublinha.
“É necessário um modelo que combine as duas coisas, pelo menos por algum tempo, até que a gente consiga chegar, daqui cinco, seis anos, com um cenário em que as dívidas estejam mais equacionadas, que os times possam ter mais liberdade de gasto. Aí, sim, se passa a controlar basicamente os gastos”, completa.
Há quem acredite que o investimento no futebol por meio do dinheiro de um terceiro, como acontece com as SAFs, fere o fair play financeiro. Sobre isto, o especialista faz uma ponderação.
“Quem entra neste negócio de SAF geralmente está comprando um ativo desvalorizado, que precisa de investimento. Não me parece fazer sentido neste primeiro momento limitar os gastos de Botafogo e Cruzeiro, por exemplo, em relação a suas receitas porque até para elas crescerem, o clube não consegue ter uma mudança necessária. É necessário ter flexibilidade para aceitar que algum dinheiro extra entre para garantir que as contas estejam em dia.”
DISPUTAS INTERNAS. Assunto antigo no futebol nacional, o fair play financeiro voltou à pauta após os altos investimentos do Botafogo, campeão brasileiro e da Libertadores em 2024, incomodarem rivais. O time carioca tem SAF controlada pela Eagle Holding, rede multiclubes do bilionário americano John Textor, que também administra o francês Lyon e o inglês Crystal Palace. A principal queixa é de que o time alvinegro carioca não teria condições de realizar movimentações arrojadas no mercado da bola somente com a própria arrecadação.
Segundo a edição 2024 do relatório Convocados, o Botafogo apresentou receita de R$ 355 milhões em 2023 e gastos de R$ 444 milhões. No ano passado, a SAF alvinegra investiu impressionantes R$ 373,2 milhões somando as duas janelas de transferências, com destaque para as contratações de Thiago Almada (R$137,4 milhões) e Luiz Henrique (R$ 106,6 milhões), as duas mais caras da história do futebol brasileiro até então. O clube faturou R$ 245 milhões somente com premiações em 2024.
Diferentemente de Ronaldo Fenômeno, que adotou uma postura de austeridade quando comprou a SAF do Cruzeiro, Textor entende que é preciso investir forte no negócio para aumentar as receitas do clube e, a longo prazo, torná-lo sustentável. Ao se tornar sócio majoritário, o americano também assumiu a dívida bilionária do clube associativo, cujo passivo teve parte renegociada no Regime Centralizado de Execuções (RCE). As parcelas de 2024 somam R$ 151 milhões pagos aos credores.
Além do Botafogo, outras SAFs do futebol nacional entraram na jogada dos grandes investimentos, como o Bahia, que está atrelado ao Grupo City, dos Emirados Árabes Unidos, abastecido pelo “infinito” dinheiro do petróleo, e o Cruzeiro, que agora está sob o controle de Pedro Lourenço, empresário mineiro dono da rede Supermercados BH e cruzeirense fanático.
O Palmeiras, com receias potencializadas pela venda de jogadores promissores das categorias de base, decidiu mudar de postura em 2025 e foi agressivo para o mercado, fazendo contratações com altas compensações financeiras. O atacante Paulinho foi comprado do Atlético-MG por R$ 118 milhões. Vitor Roque, vindo do Barcelona, custou ainda mais: R$ 154 milhões, a transação mais cara do futebol nacional.
REDE MULTICLUBES. Segundo o Observatório Social do Futebol, atualmente 178 clubes estão distribuídos em 56 redes multiclubes diferentes. Botafogo e Bahia se beneficiam também por fazerem parte de conglomerados. Os cariocas, por exemplo, têm como “carta na manga” em negociações por atletas oferecer uma ida à Europa por meio do Lyon. Porém, a maneira como ocorre o pagamento entre times do mesmo grupo levanta a questão sobre a legitimidade do negócio, assim como o fato de a Eagle utilizar um “caixa único” para gerir todas as equipes da rede, alocando dinheiro onde é necessário para evitar problemas.
“Deveria haver uma regra controlada pela Fifa quando falamos de grupos trabalhando internacionalmente. O Botafogo é um caso atípico porque o Textor entrou no mercado querendo impor uma condição dele, não é assim em lugar nenhum. O City e a Red Bull, por exemplo, trabalham clube a clube, segundo as regras de cada país. O regulador na França não está interessado em saber se o dinheiro está no caixa da Eagle, nos Estados Unidos, no Botafogo ou na Bélgica. Ele quer saber da condição sustentável do Lyon. O Textor entra no mercado querendo modificá-lo e acaba criando uma confusão para ele mesmo”, comenta Grafietti.
NA EUROPA. A Uefa define o fair play financeiro como uma série de medidas existentes “para melhorar a capacidade econômica e financeira dos clubes, aumentando a transparência e a credibilidade deles; colocar a proteção necessária a credores e garantir que clubes cumpram suas obrigações; introduzir mais disciplina e racionalidade nas finanças; e encorajar clubes a operar com base nas receitas deles e o gasto responsável pelo benefício de longo prazo do futebol.
A própria Uefa tem as suas regras, que preveem limite de 60 milhões de euros em prejuízos acumulados por três temporadas ou 90 milhões de euros se houver aporte de até 30 milhões de euros dos acionistas. E também limite de comprometimento de 80% em relação das receitas com salários, encargos, agentes e amortizações. Não é permitido atrasos em pagamentos nos meses de julho, outubro e janeiro.
Os times que não respeitam as diretrizes podem ser impedidos de disputar as competições da entidade, como a Champions League.
Além disso, os principiais campeonatos nacionais da Europa também possuem regulamentações próprias. Na Premier League, a liga de futebol da Inglaterra, as equipes podem ter um prejuízo de até 105 milhões de libras (quase R$ 750 milhões) em três temporadas. Os proprietários podem cobrir até 90 milhões de libras desse prejuízo comprando ações e os que não cumprem o estabelecido perdem pontos na tabela de classificação.
Em LaLiga, na Espanha, os clubes são proibidos de inscrever novos jogadores se ultrapassarem em 70% da receita os gastos com salários. A dívida líquida (fora investimentos em infraestrutura) não pode superar as receitas, e o saldo negativo entre contratações e vendas de jogadores não pode ser superior a 100 milhões de euros.
A Bundesliga, o Campeonato Alemão, possui um sistema de multas e dedução de pontos para os clubes que desrespeitam as regras. Times com dívidas só podem comprar um jogador após vender um outro atleta ao menos pelo mesmo valor e nenhum grupo pode possuir 50% de uma agremiação ou mais. A Ligue 1, na França, pode rebaixar as equipes e impedi-las de contratar novos atletas em caso de gasto com salários acima de 75% das receitas. (Rodrigo Sampaio e Ricardo Magatti)
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