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Paulo Baía

 O país cansado de si mesmo: a pesquisa Quaest e o retrato intimo do Brasil político

* Paulo Baía
A pesquisa Genial Quaest, ao medir intenções de voto, rejeições, avaliações de governo e desejos difusos do eleitorado brasileiro, não oferece apenas números. Ela expõe um estado de espírito coletivo. O Brasil que emerge desses dados não é apenas um país dividido. É um país exausto. Um país que carrega no corpo social as marcas de anos de conflito permanente, de promessas reiteradas, de rupturas institucionais, de paixões políticas convertidas em identidade e de uma sensação persistente de que o futuro nunca chega inteiro. O que a Quaest revela, no fundo, é menos uma disputa eleitoral e mais um drama sociológico profundo. Um drama sobre pertencimento, medo, esperança e cansaço.
Lula aparece na liderança dos cenários eleitorais testados. Não por acaso. Ele encarna, para uma parcela expressiva da sociedade, a memória de um tempo em que o país parecia mais previsível, mais integrado, mais capaz de produzir alguma forma de ascensão social. Mas essa liderança não vem acompanhada de entusiasmo. Vem cercada de rejeição. Vem atravessada por ambivalência. O mesmo eleitor que reconhece em Lula uma figura de estabilidade também expressa desconfiança, desapontamento e frustração. É como se o país dissesse, silenciosamente, que não acredita mais plenamente em ninguém, mas ainda assim teme profundamente as alternativas.
Do outro lado do espelho político, o bolsonarismo segue presente como sombra e como ameaça simbólica. Mesmo com Jair Bolsonaro fora do jogo institucional, sua força permanece no imaginário político. A pesquisa mostra que nomes associados a ele carregam altos índices de rejeição, mas também conservam uma base fiel. Essa combinação é reveladora. O bolsonarismo deixou de ser apenas um projeto político. Tornou-se um dispositivo emocional. Um modo de organizar ressentimentos, medos e fantasias de ordem em uma sociedade profundamente desigual. Ele não cresce apenas pela adesão. Ele se mantém pela radicalização afetiva. Pela lógica do nós contra eles. Pela recusa em aceitar a complexidade do mundo social.
Sociologicamente, o Brasil captado pela Quaest é um país fraturado não apenas por ideologia, mas por experiências de vida radicalmente distintas. Há um Brasil que teme o retorno do autoritarismo e outro que sente nostalgia de uma autoridade imaginada. Há um Brasil que associa democracia à proteção de direitos e outro que a percebe como sinônimo de desordem. Essas percepções não surgem do nada. Elas são produzidas por décadas de desigualdade estrutural, de exclusão histórica, de violência cotidiana e de um Estado que nunca conseguiu ser plenamente percebido como justo ou eficaz.
Nesse cenário, a política deixa de ser um espaço de construção coletiva e passa a funcionar como arena de projeções psicológicas. O eleitor não escolhe apenas programas ou propostas. Ele escolhe símbolos. Escolhe narrativas que deem algum sentido ao seu desconforto existencial. A pesquisa revela isso quando aponta o desejo crescente por uma alternativa que não seja nem Lula nem Bolsonaro. Esse dado é decisivo. Ele mostra que há uma parte significativa da sociedade que já não se reconhece nos polos que organizaram a vida política brasileira na última década. É o grito contido de um país que quer sair da armadilha emocional da polarização, mas ainda não enxerga claramente para onde ir.
Do ponto de vista psicológico, o Brasil revelado pela Quaest é um país em estado de fadiga crônica. Anos de crise política contínua produziram um eleitor hiperestimulado e ao mesmo tempo cansado. Há indignação, mas também apatia. Há engajamento, mas também esgotamento. O excesso de conflito desgastou a capacidade de escuta, de diálogo e até de imaginação política. Muitos eleitores não rejeitam apenas candidatos. Rejeitam a própria experiência política como fonte de sofrimento.
Essa fadiga se manifesta de forma paradoxal. Lula lidera, mas enfrenta desaprovação relevante. Bolsonaro é rejeitado por muitos, mas segue como referência para outros. O centro aparece como desejo abstrato, mas não como força concreta. O resultado é um campo político suspenso, instável, marcado por escolhas defensivas. Vota-se menos por convicção e mais por medo. Menos por projeto e mais por aversão ao outro. A pesquisa não mede apenas preferências. Ela mede mecanismos de sobrevivência emocional.
Há também um dado silencioso, mas fundamental. A desconfiança generalizada nas instituições. Quando a política se torna uma guerra permanente, as instituições passam a ser vistas não como mediadoras, mas como armas. Parte da sociedade desconfia da Justiça, do Congresso, da imprensa, do sistema eleitoral. Outra parte desconfia da própria sociedade. Esse clima de suspeita corrói os vínculos sociais e produz um terreno fértil para soluções autoritárias ou messiânicas. A Quaest capta esse mal-estar ao mostrar um eleitorado que oscila entre a defesa da democracia e a tolerância a discursos de força.
O Brasil que se aproxima de 2026 é, portanto, um país em disputa consigo mesmo. Um país que não resolveu seus traumas recentes. A pandemia, a violência política, a tentativa de ruptura institucional, a radicalização do discurso público deixaram marcas profundas. Essas marcas aparecem nos números, mas sobretudo no tom emocional que os números sugerem. Não há euforia. Não há horizonte claro. Há tensão, medo, expectativa contida e um desejo difuso de normalidade.
Lula representa, para muitos, a promessa de que o país não voltará ao abismo. Mas já não representa, sozinho, a promessa de um futuro luminoso. O bolsonarismo representa, para outros, a fantasia de uma ordem rígida que nunca existiu, mas que oferece conforto psicológico diante do caos. Entre essas duas forças, cresce o silêncio de quem não se sente representado, mas ainda assim será chamado a escolher.
A pesquisa Quaest não antecipa apenas resultados eleitorais. Ela revela uma sociedade em processo de desgaste simbólico. Um país que precisa reconstruir a política não apenas como disputa de poder, mas como espaço de sentido. Enquanto isso não acontece, as eleições seguirão sendo disputas de sobrevivência emocional. E o Brasil continuará oscilando entre a memória de um passado idealizado e o medo de um futuro incerto.
O drama brasileiro hoje não é apenas quem vencerá em 2026. É se o país conseguirá transformar cansaço em reflexão, polarização em aprendizado e conflito em reinvenção democrática. A Quaest, ao revelar o estado da alma coletiva, nos lembra que a política começa muito antes do voto. Ela começa na forma como uma sociedade lida com seus medos, suas frustrações e sua capacidade de imaginar algo diferente de si mesma.
* Sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ

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