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Eduardo Afonso

 Qual o problema de ser isentão?


Eduardo Affonso, O Globo (02/08/2025)


Um apelido só pega — e cumpre sua função de desqualificar, ridicularizar, ofender e humilhar — quando o apelidado se incomoda. Quando, em alguma escala, admite haver algo de negativo no epíteto que lhe dão.


“Gay” foi um termo depreciativo até ser apropriado pela comunidade homossexual, esvaziado do seu caráter jocoso e assumido nas “paradas de orgulho”. Outras palavras ainda são usadas para tentar agredir alguém por sua orientação sexual — essa não funciona mais.


Com “crioulo”, não deu tão certo. Bem que tentaram: Jorge Benjor escreveu “Crioula”, sucesso na voz de Zezé Motta, e “Menina crioula” (Tens o andar de uma guerreira, crioula/Tens no sangue um vulcão/Tens um gesto de princesa, crioula/Continuas sendo a dona da festa/E do meu coração). Junto com “negão” (resgatado por Antonio Risério no título do seu mais recente livro, “Pelé, o negão planetário”), a palavra permanece no index das ofensas raciais — apesar de um dos melhores cantores e compositores da sua geração, numa espécie de manifesto político e de resistência, ter escolhido o nome artístico de Criolo.


Agora imagine o contrassenso de alguém se sentir hostilizado por um elogio. Aconteceu com a demonização de “liberal” (que valoriza a liberdade individual), “progressista” (favorável às transformações), “patriota” (que ama e defende o lugar onde nasceu). Passou da hora de esvaziar, desmitificar e tirar o encosto de mais um: “isentão”.


O aumentativo pode conotar admiração ou desprezo, mas “isento” quer dizer liberto, desembaraçado, imune. Limpo, justo, desapaixonado. Imparcial. Sensato. Neutro (pensemos aqui na Suíça, não no xampu ou no pronome). Não é um sonho de consumo para qualquer cidadão?


O isentão acha absurdo e inconsequente o tarifaço trumpista — e usa os mesmos adjetivos tanto para quem só pensa em polarizar ainda mais o tema para uma eventual reeleição quanto para aquele cujo único objetivo é livrar a si e aos seus de uns bons anos na cadeia. O isentão (ou sensatão) sabe que seria melhor investir na negociação e no que for melhor para o Brasil, em vez de transformar o país numa República de Bananas — ou do Bananinha.


O isentão (ou equilibradão) não precisa escolher entre Hamas e Netanyahu, entre ignorar a fome ou a manipulação midiática da guerra: pode querer dois Estados convivendo em paz, sem opressão e sem terrorismo.


O isentão (ou responsavelzão) sabe distinguir invasor e invadido, democracia e ditadura, defesa da soberania e populismo, Estado de Direito e abuso de poder.


Não quer um presidente que faça campanha, sorridente, em pontilhão de tábua sobre esgoto a céu aberto. Prefere um que morra de vergonha por governar um país que, depois de 16 anos sob os cuidados do seu partido, ainda conviva com tanta miséria — ou um que invista em saneamento, infraestrutura, segurança, educação, saúde, não em preconceitos e tramas golpistas.


Na falta de bons xingamentos para quem busca conciliação e convergência, os interessados no enriquecimento ilícito, na supressão das liberdades, nos sigilos centenários, em rachadinhas e conchavos inventaram essa ação de lesa-dicionário.


Isentão, sim, por que não? Isso de insulto não tem nada.

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