O exemplo que vem do Chile
A coluna de Carlos Sardenberg, publicada em O Globo nesta segunda-feira, me fez sentir inveja do Chile — um país que eu já admirava pela Concertación Democrática, responsável pela construção de uma democracia estável e por um bom desempenho econômico no período pós-Pinochet.
Os partidos da Concertación, pilares dessa estabilidade, foram destroçados, assim como o partido da centro-direita tradicional, pela onda antipolítica que acabou desaguando na eleição de Kast — da mesma forma que, no Brasil, a antipolítica levou à eleição de Bolsonaro.
Mas não foi isso que me fez, hoje, voltar os olhos para os Andes e sentir inveja do Chile. A coluna de Sardenberg informa que, entre outubro de 2024 e dezembro de 2025, três ministros da Suprema Corte chilena foram afastados de seus cargos: dois pelo Senado — um deles por unanimidade — e outro pela própria Corte.
Aí surge o primeiro grande diferencial do Chile quando comparado a nós, brasileiros. No país de Salvador Allende e Gabriel Boric, para afastar um magistrado não é necessário provar que ele — ou ela — praticou corrupção, nem que tomou decisões com o objetivo explícito de favorecer parentes ou amigos. Basta a aparência de parcialidade, além da existência de relações familiares ou pessoais impróprias.
Foi com base nesse critério que, em outubro de 2024, a própria Suprema Corte destituiu a juíza Angela Vivanco, que havia sido vice-presidente do tribunal. O motivo: relações impróprias com o advogado Luis Hermosilla — um dos mais famosos do país, com trânsito em governos de esquerda e de direita, além de membros do Poder Judiciário. A juíza afastada não foi flagrada negociando diretamente qualquer decisão. Ainda assim, o tribunal considerou inadmissível sua relação com o advogado, que, por meio dela, tinha acesso privilegiado ao que se passava na Corte.
O segundo membro afastado — esse pelo Senado, por pequena diferença de votos — foi o juiz Sérgio Muñoz. Esse episódio doeu na alma de muitos chilenos. Muñoz era um magistrado comprometido com os direitos humanos e a defesa do meio ambiente em várias de suas decisões. Não houve qualquer acusação que colocasse em dúvida sua honestidade pessoal. O motivo do afastamento foi o fato de sua filha, advogada, ter trabalhado para empresas envolvidas em grandes questões econômicas, inclusive regulatórias.
O terceiro caso, também por meio de uma “acusação constitucional”, resultou no afastamento, pelo Senado e por unanimidade, do juiz Diego Simpértingue. Ele e sua esposa foram flagrados pela imprensa em um cruzeiro no Mediterrâneo na companhia do advogado de uma multinacional com causas na Suprema Corte. O juiz perdeu o cargo porque não se declarou impedido de participar do julgamento de alguns desses processos.
Chego à conclusão de que o Chile nos humilha. Aqui, o Supremo Tribunal Federal alterou recentemente o entendimento sobre o impedimento de juízes — incluindo ministros — julgarem casos em que uma das partes seja cliente de escritório de advocacia no qual atue parente até o terceiro grau ou o cônjuge. A decisão ocorreu no contexto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra dispositivo do Código de Processo Civil (CPC).
Tão ou mais grave: membros do Supremo participam de eventos financiados por empresas com causas no STF e acham isso absolutamente normal. Também não veem problema em pegar caronas em jatinhos particulares, mesmo quando neles estão advogados de causas que irão julgar.
Quando o Supremo esboça medidas para delimitar de forma mais rígida a fronteira entre o público e o privado, interesses corporativistas incrustados na instância máxima do Poder Judiciário se sublevam e tentam boicotá-las. É o que assistimos agora diante da proposta do presidente do STF, ministro Edson Fachin, de o Poder Judiciário adotar um código de conduta para seus membros. Fachin é uma ilha de postura impoluta em uma Corte na qual alguns de seus integrantes não observam o decoro e o recato necessários.
Em certo sentido, o STF é também um espelho da sociedade. A maioria de nós acha natural — ou se acostumou, sem bradar — com práticas permissivas que, no Chile, gerariam um escândalo nacional. Nos acomodamos e não nos engajamos em boas causas, como a bandeira levantada por Fachin.
Para agravar, parte de nós distorce valores e transfere responsabilidades quando a jornalista Malu Gaspar traz à luz fatos que precisam ser passados a limpo.
De fato, é para morrer de inveja do Chile.
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