Sílvio Romero, respeitado intelectual na virada do século XIX para o XX, disse: “somos formados pelo pior da África, o pior das Américas, o pior da Europa”. Capistrano de Abreu, mais ou menos na mesma época, desenhou nossos antepassados com as piores injúrias: só defeitos, zero qualidades. Sérgio Buarque de Holanda disse sobre os luso-europeus serem aventureiros, avessos ao trabalho. Sobre os luso-americanos, acrescentou um dito esquecido de Barléu: “não existe pecado abaixo da linha do Equador”. E isso nem é verdade, registre-se.
Em Pernambuco, Maurício de Nassau é mais mencionado que Vidal de Negreiros, Filipe Camarão e Henrique Dias, os heróis de Guararapes, um filho de portugueses, outro de tupis, outro de africanos. Se viam como brasileiros. Por isso lutaram, evitando que o Brasil se transformasse em um grande Suriname, ou numa Indonésia americana. Registre-se que o capitão pernambucano Luís Barbalho Bezerra, ao enfrentar comandados de Nassau, disse ser difícil atirar em homens de olhos azuis. A beleza está nos olhos de quem vê.
A tradição autodepreciativa brasileira é antiga e hegemônica. Nelson Rodrigues não inventou. O caso é mais de vergonha. Essa parte da culpa é recente, mas vergonha e culpa andam juntas, se não são a mesma coisa. Eu inventariei essa tradição autodepreciativa em meu livro “História do Brasil vira-lata”. No canal, há o livro completo transcrito em trechos.
Inventariar é uma coisa. Outra é perguntar: é mesmo? Não temos motivos históricos para a autoestima? Bem, no início do século XIX, nossa renda per capita perdia por pouco para a dos Estados Unidos. De lá para cá, abriu-se um fosso, lenta e continuamente. Devemos ter errado em alguma coisa, erramos mesmo, especialmente por nossa negligência para com o ensino básico. Contudo não há culpados evidentes no registro histórico, pelo menos não de caso pensado, por maldade. E isso vale para governantes e governados. Nossos pecadores eram católicos, logo se supõe tenham pedido perdão de eventuais falhas. Nossos santos eram também pecadores, mas quão pobre será a nação que santifica seus ícones sem nuanças? Não somos nisso tão miseráveis.
Quanto às culpas politicamente corretas, não houve extermínio indígena deliberado, intencional. Estima-se que até metade de nossos ameríndios morreram por doenças trazidas da Europa e da África nos navios. Século e meio antes de 1500, semelhante parcela dos europeus morrera de peste, trazida nos navios. O patógeno era de origem asiática e é notável que não se ponha a culpa nos asiáticos com veemência por isso. O contato era inevitável, questão de tempo, lá e cá, em toda parte.
O escravismo era mesmo abominável. Ainda mais abominável se constatamos se tratar de prática abjeta universal até o século XVIII pelo menos. Não acabou. Há mais pessoas submetidas a trabalho escravo hoje do que em qualquer data no passado. Tardou a abolição formal no Brasil? Sem dúvida. Tardou ainda mais em alguns países da África. Diga-se em nosso favor que o regime nunca incluiu algo como as leis Jim Crow dos Estados Unidos, de apartheid, vigentes até meados dos anos 1960. Não existe pecado do lado de cima da linha do Equador.
Culpar os outros é maniqueísmo de quinta categoria, vamos combinar, sim? Primeiro os portugueses, como se brasileiro não fosse rigorosamente igual a luso-americano. Na cultura, que é o que importa. Portanto, é mais autodepreciação. E logo em relação ao português, o pequeno povo que apresentou o mundo ao mundo. Os ingleses? Os americanos? Por que fizeram comércio conosco? Por que investiram aqui? Por que, no caso inglês, nos emprestaram dinheiro? “Ah, nos exploraram”. O uso do verbo explorar nesse caso tem o sentido de viver à custa do outro. São uns preguiçosos mesmo, esses seres de fala inglesa. Vivem do que o mundo dá a eles. Pera. Esses dias não estávamos desesperados para que não parassem de comprar o que produzimos? É mesmo o caso de parar de fazer comércio? Isso iria nos redimir? De quê, afinal? Nacionalismo vitimista é uma vertigem, uma espécie de alienação.
Harold Bloom perguntou como podia Machado de Assis escrever tão bem tendo vivido o tempo todo nos trópicos, no Brasil, para piorar. Não nos ocorre a pergunta de Bloom, porque nós não sabemos o quão bem escrevia Machado de Assis, um brasileiro mestiço, como a maior parte dos brasileiros. Não o lemos. Não lemos quase nada. Isso deveria afetar negativamente nossa autoestima. Não afeta. Enquanto não afetar, é uma tragédia. Nossa redenção está ao alcance dos nossos olhos e nos distraímos com outras coisas, como com uma autodepreciação assentada não no registro histórico, mas na ignorância do registro histórico.