Eu não assisto novelas.
A última que vi foi Dancin’ Days — e confesso, não pela trama, que era uma discoteca de clichês sentimentais, e sim pela trilha sonora internacional, que ainda ouço em segredo, com fones de ouvido e culpa ideológica, para não ser linchado pela esquerda cirandeira-hipster que acha que Bee Gees é expressão do patriarcado misógino. Que preguiça!!!!
Ainda assim, acompanho os comentários, os memes, as frases fora de contexto que se tornam aforismos nacionais.
Aprendi com Jesús Martín-Barbero que as novelas são espelhos da sociedade — e que, ao olhar para elas, o brasileiro não busca apenas distração, busca o próprio reflexo polido, dramatizado e com trilha sonora.
É curioso como o país parece mais disposto a discutir ética, poder e moralidade depois do último capítulo de uma trama de Vale Tudo do que após um debate eleitoral.
A novela nos devolve a nós mesmos — caricatos, contraditórios, vaidosos, espirituosos — com aquele tom de tragicomédia que só o realismo televisivo consegue sustentar. E, entre todas as caricaturas que a teledramaturgia já produziu, poucas são tão deliciosamente repulsivas, quanto Odete Roitman.
Ah, Odete… essa entidade sociológica de salto alto e tailler. Um misto de Freud com Chanel, de Nietzsche com “Manual de Boas Maneiras”. Sua fala é um chicote revestido de veludo. Ela é o tipo de mulher tem cátedra sobre o desprezo.
Já convivi com algumas sumidades da academia que, nos bastidores, eram verdadeiras Odetes Roitman com Lattes. Mulheres — e homens também, sejamos justos — que discursavam sobre ética, alteridade e empatia nas bancas, mas tratavam orientandos como subespécies sem currículo. Professores que citavam Foucault com entonação sacerdotal, enquanto aplicavam o panóptico na copa do departamento. Gente que dizia “meu bem” com a mesma entonação de quem diz “lixo tóxico”.
Odete, se tivesse doutorado, ministraria uma pós-graduação em Análise de Discurso da Ofensa Aplicada e Semiótica da Ironia Estrutural, com estágio supervisionado em passivo-agressividade avançada e módulo optativo de sarcasmo elegante em contextos institucionais.
A personagem destila um compilado de frases venenosas, tipo um “Minutos de Sabedoria” versão milionária. Consegue humilhar alguém elogiando o corte de cabelo e ainda falar sobre pobreza enquanto enxuga a consciência com um lenço Hermès.
O público a ama porque ela é o sombrio coletivo de salto agulha. Tudo o que o brasileiro gostaria de dizer, mas não pode, Odete diz com uma taça de champanhe na mão e o léxico de quem nasceu em Genebra — mesmo tendo vindo do Leblon ou da Vila Nova Conceição.
Ela exorciza a vulgaridade alheia com elegância demoníaca. É uma caricatura tão perfeita que beira o sagrado: o sagrado da sombra, o arquétipo do cinismo elevado à arte.
As redes sociais, claro, a ressuscitaram. Agora, cada frase de Odete é postada como se fosse uma epifania existencial. “Querida, não há nada mais deselegante do que fazer um enema à Provence com água saborizada.” Veja bem — isso é uma tese sobre o gosto burguês travestida de deboche. “Humilhe de maneira que pareça elogiar.” Eis o manual de sobrevivência da pós-modernidade, resumido em uma sentença.
E quando ela diz que tem medo de quem come em self-service, ali está o diagnóstico antropológico de uma elite do atraso que teme o convívio com a mistura. A bandeja é o inferno da distinção.
A lasanha encostando no feijão é, para Odete, o apocalipse da etiqueta — o Armagedom da distinção social. Ela teme o contato, o contágio, a mistura. Marx já avisava: a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, e Odete é a santa padroeira dessa missa plutocrata. Ela é o sonho molhado do pobre que quer virar rico, a teologia da prosperidade em versão farisaica — crê no mérito, despreza o suor e acha que a diferença entre o paraíso e o purgatório está na marca dos sapatos e das bolsas.
Estudei as mediações culturais, os fluxos de sentido e os circuitos simbólicos na obra de Jesús Martín-Barbero. E quanto mais observo as novelas, mais percebo que o melodrama é o confessionário público da nação — o espaço em que o desejo e a moral se enfrentam em rede nacional, sob o patrocínio do sabonete e da culpa. Vale Tudo é, na verdade, um grande divã em streaming, e Odete Roitman, sua analista suprema: a psicanálise da burguesia televisionada, o sintoma social trajado de ironia e colar de pérolas. Não é por acaso que, décadas depois, ainda a citamos como se fosse uma espécie de oráculo da malícia. Odete é o espelho da alma cordial que não quer se ver, mas se vê — e ri, porque o riso é a máscara mais elegante da identificação.
Eu, que tento me manter equânime, às vezes me pego pensando o quanto de Odete existe em mim. Não o luxo, tampouco o sarcasmo milimetricamente calibrado. Falo da necessidade de afirmar alguma superioridade moral quando o mundo parece desabar. Essa minha mania de confundir distinção com defesa. Talvez Odete seja a persona endurecida para que o medo não transpareça.
Por isso, quando alguém pergunta por que o público ama tanto uma mulher odienta, elitista e preconceituosa, respondo sem hesitar: Odete ilumina nossa sombra. Ela representa o gozo de poder ser cruel sem culpa, de dizer o que não se deve, de confessar o que a moral nega. Ela é a catarse do ressentimento social — o pecado transformado em estilo.
E no fim das contas, é irresistível. Porque, convenhamos, há dias em que todos nós gostaríamos de ter a coragem de dizer algo como: “Querido, evite seda pura se seus mamilos forem temperamentais.” Há uma sabedoria filosófica escondida nesse absurdo. E talvez por isso Odete siga viva — não apenas na novela, nem na releitura contemporânea, mas no imaginário que ela tão bem dramatiza.
Não assisto novelas, repito. Mas as observo de longe como quem observa o espelho de uma sociedade em busca de si mesma — uma sociedade que, no fundo, se reconhece mais em Odete do que em qualquer heroína. E talvez essa seja a mais deliciosa das ironias: a vilã venceu, não por ser má, e sim por ser verossímil.
No fim, Odete venceu porque o Brasil sabe que ser mau dá menos trabalho do que ser coerente — e rende muito mais ibope, seguidores e colunas na Folha.
A música de abertura de Vale Tudo*chama-se Brasil , composição de Cazuza e incendiada pela voz incandescente de Gal Gosta, essa sacerdotisa tropicalista que transforma eros em clarim. “Brasil, mostra tua cara!” — urra refrão, e o país, obediente ao espelho, mostra: a cara é de Odete Roitman.
Ela é o retrato da nossa miséria simbólica, a vilania elegante do desejo de status, o colar de pérolas pendurado no pescoço da hipocrisia nacional.
Odete é o Brasil da cachaça travestido de champanhe: feroz, vaidoso, ressentido e absolutamente sedutor — a síntese perfeita entre pecado e santidade.
Lembro-me de Sérgio Buarque de Hollanda e sua lucidez em Raízes do Brasil sobre os contrastes: cordialidade e brutalidade dançando no mesmo salão. Somos herdeiros de uma terra em que o prazer e a culpa dormem na mesma cama, um país que não sabe se é procissão ou carnaval. “Não existe pecado ao sul do Equador”, escreveu o filho, Chico; “há um delírio de ouro nos trópicos”, advertiu o pai.
Entre ambos, seguimos — desejando a civilidade europeia o gozo africano e a inocência originária dos povos da floresta. Erguendo igrejas sobre os terreiros, sonhando com o melhor dos mundos e acordando no meio do incêndio.
Agradeço a Andre Gabeh pelos textos e imagem.
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