E vamos em frente...

 Livre, leve e solto


A reabilitação penal e política de José Dirceu, que agora pode circular como se fosse o mais probo dos homens públicos, escarnece dos cidadãos que acreditaram num Brasil mais decente


Aos brasileiros justos tem sido negado o direito de sonhar com um ano novo mais auspicioso para o País. Uma nesga de esperança por um futuro mais decente é logo abatida por sinais de que aqui, ao que parece, o crime compensa, a depender da resiliência dos malfeitores para amargar um período de dissabores que, mais cedo ou mais tarde, decerto serão atenuados, quando não revertidos, em virtude de suas relações com figuras bem posicionadas na política e no Judiciário. José Dirceu é a personificação desse Brasil que deu certo para os apanhados em malfeitos que sabem esperar.


No dia 17 de dezembro, a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou dois processos contra Dirceu no âmbito da Operação Lava Jato em Curitiba (PR), nos quais ele havia sido condenado a mais de 20 anos de prisão. Segundo o advogado Roberto Podval, eram as duas últimas ações penais a que seu cliente respondia, de modo que o petista tem o caminho aberto para recuperar seus direitos políticos e se candidatar a um mandato eletivo em 2026. Dirceu já manifestou em público a intenção de voltar à Câmara dos Deputados, de onde saiu cassado em 2005 na esteira de outro escândalo de corrupção, o “mensalão”, do qual, como o País lembra bem, ele foi um personagem de proa.


O consigliere petista tem motivos de sobra para colocar 2024 entre os melhores anos de sua vida. Em março, sua festa de aniversário em Brasília foi, na verdade, o début de sua reabilitação política. Pelo salão transitou a nata do poder político e econômico do País, incluindo autoridades de alto escalão do Executivo e do Legislativo, das mais variadas afiliações partidárias, empresários, advogados e jornalistas. Dirceu circulou livre, leve e solto entre os cerca de 500 convidados como se fosse o mais probo dos homens públicos, como um injustiçado que, enfim, encontrava a redenção.


Durante o rega-bofe, nenhum dos convivas manifestou o menor sinal de constrangimento por estar celebrando um criminoso condenado em múltiplos processos por crimes gravíssimos, como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa – condenações estas corroboradas por todas as instâncias judiciais, ou seja, sem que houvesse dúvidas sobre a autoria e a materialidade dos crimes que foram imputados a ele. Ao contrário, Dirceu foi tratado como um oráculo político, além de uma peça fundamental para o projeto de poder do PT para além do atual mandato do presidente Lula da Silva.


O encerramento das ações contra Dirceu no STJ é decorrência direta de uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que, em outubro, anulou todos os atos processuais tomados ou autorizados pelo então juiz Sérgio Moro contra o petista. O decano do STF estendeu a Dirceu os mesmos benefícios concedidos ao companheiro Lula da Silva, sob a argumentação de que, assim como o presidente da República, Dirceu teria sido vítima de uma “ação coordenada” entre Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato no Paraná. Porém, nem a Mendes nem a Dias Toffoli – outro ministro do STF que resolveu fazer tábula rasa dos fatos e das provas, reescrevendo, na prática, a história da maior operação de combate à corrupção de que o País já teve notícia – ocorreu que as supostas evidências desse “conluio” entre o Judiciário e o parquet foram obtidas por meios manifestamente ilegais, sendo, portanto, inválidas.


Ninguém minimamente bem informado sobre o que aconteceu no Brasil nos últimos anos haverá de negar que os procuradores da Lava Jato decerto cometeram muitos erros processuais, para dizer o mínimo, em nome do que entendiam ser um “bem maior”, qual seja, a purgação da política por meio do enfrentamento à corrupção com todos os instrumentos que tinham à mão, fossem legais ou não. Aí está o resultado desse messianismo. Sem que a culpabilidade de condenados por corrupção, muitos deles réus confessos, fosse posta em xeque do ponto de vista factual, quase todos os criminosos envolvidos no “petrolão” foram exonerados de prestar contas à Justiça e hoje podem posar de inocentes. Dirceu é a face mais conhecida desse tapa na cara do Brasil honesto.



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