Escrever é uma mania, que se aprende na leitura precoce
Comecei tarde. Só fui alfabetizado na idade “tardia” de sete anos, porque em casa não havia livros ou revistas, nem jornais. Meus avós, imigrantes perfeitamente (se ouso dizer) analfabetos da Itália do sul e do norte de Portugal, assim permaneceram toda a vida: trabalhavam em fazendas. Meus pais nunca terminaram o primário, pela necessidade de começar a trabalhar. Eu também comecei a trabalhar cedo, ainda antes de aprender a ler: recolhendo restos de metais nos fundos de uma fábrica de peças de bakelite, que despejava o lixo industrial nos fundos, num terreno baldio; eu e muitas outras crianças e jovens recolhíamos pequenas peças de metal, no meio da lixaria, guardávamos em latas usadas de leite condensado, e depois levávamos para nossos pais vender na reciclagem. Era uma forma de completar o miserável orçamento doméstico, indispensável para assegurar o arroz e feijão, o pedaço de gelo, trazido por um vendedor de carrocinha, coberto de serragem, que servia de “geladeira” num armário de madeira.
Tive a sorte, a grandíssima sorte, de morar perto de uma biblioteca infantil municipal: a Biblioteca Anne Frank, no bairro do Itaim-Bibi, em São Paulo, e que antes se chamava Chácara Itaim: ruas de terra, muitos terrenos baldios, alguns transformados em campinhos de futebol improvisado, com duas pedras, ou latas de tinta, sinalizando o gol em casa extremo.
Comecei a frequentar a biblioteca antes de aprender a ler: joguinho de palitos, damas, filmes da Atlântida (Oscarito e Grande Otelo), ou os estrangeiros: Tarzan, Zorro, Hopalong Cassidy, Roy Rogers, Gordo e Magro, Charlie Chaplin, Buster Keaton, o outro Zorro (o do Tonto), as chanchadas nacionais e os mais elaborados de Cinecittà: Maciste, Hércules, aquelas paródias da mitologia grega, uma delícia.
Finalmente aprendi a ler, primeiro as revistinhas da época (Bolão e Azeitona, Capitão Kid, logo em seguida Pato Donald e Mickey, publicados pela Abril). Quando aprendi a ler de verdade, comecei direto com Monteiro Lobato, e acho que isso mudou completamente a minha vida: em lugar de ficar jogando bola, ou brincando de taco com os outros meninos na rua, eu ficava na biblioteca até fechar; mais ainda, podia levar os livros para casa, para ler na cama até minha mãe apagar a luz, nunca muito tarde, para economizar, pois éramos de verdade muito pobres, de uma pobreza especial: minha mãe lavava roupa para fora, num tanque sob o sol, meu pai era por vezes operário, outras vezes entregador de café torrado e moido. Fui uma vez com ele à torrefação: o forte cheiro de café sendo torrado me deu um enjoo tão forte, que nunca tomei café, até a idade adulta.
A frequência assídua na biblioteca não me impedia de trabalhar: pegar bolas de tênis no Clube Pinheiros, ou empacotar as compras em sacos de papel no supermercado Peg-Pag do começo da Marechal Floriano com a São Gabriel, só por gorgetas. Olhava cobiçoso os milk-shakes ou sorvetes de taça na esquina, mas nunca comprei com os meus tostões: tudo era entregue à minha mãe, para ajudar nas despesas da casa.
Continuei lendo, intensamente, e a partir do meio do primário comecei a escrever, primeiro os trabalhos da escola, depois os resumos dos livros que lia. Tudo se perdeu, só sobrevivendo textos esparsos da fase ginasial. O grande impulso em meu futuro quase intelectual foi dado no Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha, no Brooklin, um verdadeiro divisor de águas em minha vida. Tudo o que sou hoje, devo ao GEVOA, entre 1962 e 1965.
Minha primeira resenha “séria” já foi no colegial, com 15 ou 16 anos, um livro de Erich Fromm, publicada no boletim mimeografado do Colégio Estadual Ministro Costa Manso, ainda no Itaim. Trabalhando de dia, estudando à noite. Continuei lendo e escrevendo. Nunca mais parei. Hoje estou no trabalho de número 5080, com cerca de 1500 publicados, em todas as categorias. Milhares de páginas, manuscritas, datilografadas, digitadas, ou entrevistas gravadas, filmadas. Tudo agora para inserir em meu novo site pralmeida.net. Espero ter forças para fazê-lo. Não consigo parar de escrever.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7/10/2025
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