18/01/2009
O homem que traiu a guerrilha
Ex-guerrilheiro com treinamento em Cuba, acusado de infiltração e delação de colegas durante a ditadura, leva hoje uma vida despreocupada e tranquila em
Belo Horizonte, como diretor de empresa
Amaury Ribeiro Jr.
Do Estado de Minas
Diretor de uma das maiores indústrias do país, o executivo José da Silva Tavares demonstra, aos 62 anos, ser um homem tranquilo e despreocupado com a vida. Indiferente com a onda de assaltos que toma conta dos grandes centros urbanos, Tavares sai todos os dias de um prédio no Bairro Funcionários, região nobre de Belo Horizonte, dirigindo o carro com os vidros totalmente abertos. Cigarro aceso nas mãos encostadas nos vidros do automóvel, o executivo, quase sempre vestido de camisas listradas, sem gravata e de ternos cortados, segue, sozinho, até o escritório da empresa onde trabalha, perto de uma rodovia que dá acesso ao Rio de Janeiro.
Esse ar sereno de Tavares ajuda a esconder uma outra face do executivo: a do ex-guerilheiro com treinamento em Cuba acusado de infiltração e traição por ex-colegas e militantes de esquerda que se opuseram ao regime militar durante os Anos de Chumbo. Tavares, que nos tempos de guerrilha usava os codinomes de Severino e Vítor, se tornou um dos principais inimigos da esquerda do país em 1970, quando passou a ser responsabilizado por seus companheiros pela morte do jornalista comunista Joaquim Câmara Ferreira. Conhecido com Toledo, Joaquim Câmara sucedeu Carlos Marighella, em 1969, no comando da Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento armado que planejava derrubar o regime militar.
Segundo os ex-dirigentes da ALN, Severino foi cooptado pelo delegado do Departamento de Ordem Política Social (Dops) Sérgio Paranhos Fleury ao ser preso pelas tropas do Exército, em setembro de 1970, na rodoviária de Belém (PA), quando tentava embarcar para Imperatriz, no Maranhão, para organizar, a mando de Toledo, um foco de guerrilha rural. Menos de uma semana depois de ter dito ser preso, Tavares reapareceu em São Paulo. Em encontros com Toledo e outros dirigentes da ALN, Severino contou que havia conseguido fugir de um hospital militar depois de ter simulado suicídio.
De acordo com ex-dirigentes da ALN, a história mirabolante foi plantada pelos militares em jornais do Pará. Documentos inéditos obtidos pelo Correio/Estado de Minas com um ex-militar do Departamento de Operações Internas – Centro de Operações da Defesa Interna (DOI-CODI) – reforçam a tese de que Tavares traiu seus amigos de esquerda ao colaborar com Fleury na captura de Toledo. De acordo com um relatório secreto elaborado em 30 de novembro pelo Serviço de Inteligência do 2º Exército, a fuga de Tavares não passou de uma farsa. Segundo o documento, ao tomar conhecimento de que Tavares havia mantido contato com Toledo em São Paulo, o delegado Sérgio Paranhos Fleury recebeu apoio do comando para buscá-lo em Belém.
As informações prestadas ao delegado por Tavares acabaram contribuindo para a prisão de Toledo, que morreu depois de ser torturado por Fleury num sítio clandestino, de acordo com o relatório confidencial. “O delegado Fleury, tendo obtido informação de que EM/D.A Press - 1/1/08
José da Silva Tavares: apontado como traidor da ALN virou um executivo de multinacional na capital mineira
Vítor havia contatado com Toledo, antes de seguir para o norte do país, obteve autorização e apoio para buscar o marginado e trazê-lo para São Paulo”, afirma o documento. O papel informa ainda que, com base nas informações prestadas por Tavares, o delegado Fleury conseguiu prender o dirigente comunista na Avenida Lavandisca, em São Paulo, em 23 de outubro de 1969. Procurado pela reportagem,
Tavares não quis comentar o assunto.
Aluno destacado
Odiado pelos militantes de esquerda que se opuseram ao regime militar, o executivo José da Silva Tavares se destacou no grupo de guerrilheiros da ALN que fizeram treinamento de guerrilha em Cuba no período de julho de 1969 a janeiro de 1970. O curso de treinamento está detalhado num relatório denominado Treinamento em Cuba, elaborado pelo Serviço de Inteligência da Marinha (Cenimar) obtido com exclusividade pelo Correio/Estado de Minas.
Coincidentemente, o texto foi escrito em 28 de setembro de 1970, duas semanas depois de Tavares ter sido preso pela tropas do Exército na Rodoviária de Belém (PA), quando se preparava para viajar até Imperatriz, no Maranhão. A coincidência das datas leva antigos companheiros de esquerda a suspeitarem que o relatório foi elaborado com base em informações prestadas pelo delegado do Dops de São Paulo, Sérgio Paranhos Fleury.
“Ele era um aluno tão aplicado que chegava a nos irritar. Ganhou a confiança dos cubanos e da alta cúpula da ALN no país . Hoje, ao ver o que o Severino fez, tenho a certeza que todo o empenho dele não passava de simulação”, afirma Ricardo Apgaua, ex-guerrilheiro da ALN em Minas. (ARJ)
Quebrando as próprias regras
Historiadores, militantes de esquerdas e guerrilheiros
da Ação Libertadora Nacional (ALN) até hoje se
esforçam para entender os motivos que teriam levado
Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, a marcar encontros
com José da Silva Tavares, o Severino. Severino
restabeleceu contatos comToledo e companheiros de
guerrilha em São Paulo um mês depois de ter sido
preso pela repressão em setembro de 1970 em Belém,
no Pará. Para os ex-dirigentes da ALN, Toledo
desobedeceu as normas de segurança de grupo
guerrilheiro, criadas e defendidas pelo próprio
comandante do força armada.
“Esses documentos (obtidos pelo Correio/Estado de
Minas) somente confirmam o que eu já sabia: estava
na cara que a fuga mirabolante do Severino nunca
existiu. Eu avisei ao Toledo que esse cara era um
traidor. A gente tem, no mínimo, de checar essa
história de fuga antes de estabelecer novos contatos
com ele. Mas, infelizmente, o comandante não me
ouviu”, afirma Carlos Eugênio Paz, o Clemente, que
assumiu o comando da ALN depois da morte de Toeldo.
Autor dos livros Viagem à luta armada e Nas trilhas da ALN, que retratam os bastidores
da guerrilha urbana, Carlos Eugênio Paz conta que chegou a participar de uma reunião
entre Toledo e Severino (codinome de Tavares) em frente a uma padaria da Vila
Mariana, em São Paulo. O encontro ocorreu uma semana antes da queda de Toledo.
Arquivo Publico do Estado
de SP/Reprodução
Morto pelo ditadura,
Joaquim Câmara
comandou a ALN
“Nesse encontro, ficou claro que o sujeito, que não tinha coragem de olhar nos meus
olhos , tinha mudado de lado”, afirma Clemente.
Para o ex-deputado federal Gilney Vianna (PT-MT), que também integrou os quadros
da ALN, ao provocar a prisão e a morte de Toledo ,Tavares se tornou o maior traidor
da esquerda. “Nem o cabo Anselmo, carrasco mor, fez tanto estrago na esquerda. O
Severino sentenciou de morte não só o comandante da ALN, mas também um dos
comunistas históricos do país.” Membro do diretório nacional do Partido dos
Trabalhadores (PT), Gilney disse que, caso a traição tivesse sido confirmada a tempo,
Severino certamente teria sido executado por dirigentes da ALN. “O estatuto da ALN
previa isso”, lembra.
Execução
A punição severa prevista não era mero discurso retórico do maior grupo guerrilheiro
de esquerda da época da ditadura militar. Por exemplo, em 23 de março de 1971, o
estudante Márcio Leite Toledo, integrantes da ALN, foi executado com mais de 10 tiros
por seus próprios companheiros de guerrilha, depois de fazer críticas ao comando da
organização de esquerda. O alto comando da ALN passou a suspeitar que Márcio
tivesse contribuído para a queda de Toledo, hipótese atualmente totalmente
descartada pelos próprios dirigentes do grupo revolucionário.
A traição de Severino e a morte de Toledo instigaram também o historiador Luiz
Henrique de Castro Silva a escolher o perfil biográfico do ex-comandante da ALN como
tema de sua tese de mestrado da Universidade Federal do Rio de Janeiro intitulada O
revolucionário da convicção: Joaquim Câmara. O historiador disse que resolveu
escolher Toledo como tema de sua dissertação ao perceber que o ex-comandante da
ALN era citado nos livros de história que retratam o período do regime militar do
mesmo modo que Carlos Marighella e Carlos Lamarca, ex-capitão que desertou das
filas do Exército para ingressar a grupos de guerrilha de esquerda. “É inacreditável
entender que Toledo, um paranóico por segurança ao ponto de não perdoar atraso de
um minuto, tenha caído nesta cilada”, afirma.
Luiz Fernando acredita que a admiração que Toledo tinha pelos jovens idealistas de
esquerda possa ter levado o dirigente comunista a ter acreditado na história de
Severino. “Para Toledo, era mais confortável acreditar que um jovem enviado por ele a
Cuba tenha conseguido fugir de um hospital militar”, disse. Segundo o historiador, a
admiração dos jovens guerrilheiros por Toledo também era recíproca. Ele lembra que o
velho dirigente comunista e seus colegas da ALN foram convidados por jovens
militantes do MR-8 do Rio de Janeiro para participar do sequestro do embaixador
americano Charles Elbrick, em 1969. (ARJ)
Esses documentos confirmam o que eu já sabia: estava na cara que a fuga
mirabolante do Severino nunca existiu. Eu avisei ao Toledo que esse cara era
um traidor
Carlos Eugênio Paz, ex-líder da guerrilha
Comentários
Postar um comentário