A VOLTA POR CHINA – Carlos Eduardo Novaes
Fazem 36 anos. O dia 4 de junho de 1989 marcou o fim dos maiores protestos que a China conheceu, realizados por milhares de estudantes que pediam liberdade e democracia na Praça da Paz Celestial, em Pequim. O Exercito chinês conteve a manifestação à bala provocando a morte de 300 pessoas (número oficial). Pouco depois Deng Xiaoping, chefe supremo do país, iniciou a “Segunda Revolução”, trazendo ao mundo uma improvável novidade: a combinação de um regime totalitário com uma economia de mercado. Na ocasião Xiaoping declarou em alto e bom som: “Lamentem os mortos mas recebam a prosperidade”.
De lá para cá a China cresceu 10% por ano (em média), tirou quase 900 milhões de pessoas da pobreza e da miséria (dados do Banco Mundial), tornou-se a segunda economia do planeta, ganhou estabilidade social e sob a batuta do Partido Comunista enterrou definitivamente as esperanças de algum dia virar uma democracia.
- Nem em meus sonhos mais doces imaginei que a China seria o que é hoje – declarou ao jornal O Globo, o gerente de uma distribuidora de bebidas em Xangai.
Nem ele nem eu que estive na China em 1975 – três anos depois da visita de Nixon e um ano depois de Brasil e China estabelecerem relações diplomáticas. Mao Tsé Tung ainda era vivo – morreu em 1976 – e ao passar em frente sua residência me pus a pensar como um homem da sua estatura – física e histórica -, líder da Revolução de 1949, cabia em uma casinha tão modesta. Voltei à China 42 anos depois, em 2017.
Na época da primeira viagem à China era um ponto abaixo da curva planetária. Um país pobre, rural – 80% de sua superpopulação vivia nos campos – pouco citado na mídia e de onde ninguém saia e poucos turistas entravam (sob vigilância). Na majestosa Praça da Paz Celestial, meia dúzia de gatos pingados, nas largas avenidas uma dúzia de carros antigos e centenas, milhares de bicicletas que mais pareciam um enxame de gafanhotos.
Às oito horas da manhã tocava uma sirene pela cidade, as bicicletas paravam onde estavam e seus condutores iniciavam um momento de exercícios físicos seguidos por uma breve louvação ao presidente Mao, sempre aclamado como o Grande Timoneiro. Havia fotos de Mao espalhadas por cada metro quadrado de Pequim.
Uma cidade em preto e branco onde a noite descia pesada sem o brilho de luminosos. Raro ver um chinês em trajes comuns. Vestiam túnica azul ou cinza ou o uniforme do Exército Vermelho...na cor verde! Coloridas somente as crianças, muito coloridas. Nossos dois guias estavam sempre de azul e um deles, Chang, se espantou quando na chegada do grupo ao hotel pedi que me conseguisse um exemplar do Diário do Povo.
- O senhor entende nossa língua? – perguntou ele em português de Portugal
- Nada! Mas pelas fotos posso avaliar se há uma contrarrevolução em marcha...
A viagem de 25 dias pelo país partiu de trem de Pequim para o Sul até Cantão, de onde saímos para Hong-Kong. Logo na chegada do então “protetorado” inglês demos de cara com o cartaz: “Beware with pick-pockets! ” (Cuidado com os punguistas). Estávamos entrando em outro mundo.
Durante o périplo aproximei-me de Liu, a pequenina intérprete (1m50 talvez) que falava português melhor do que eu e abusava da expressão “joia”, na moda no Brasil. Anos depois fui encontrá-la em Havana, Cuba, onde o marido servia e mais recentemente ela me descobriu no Face Book. No trem conversávamos muito sobre nossos países, Liu pouco sabia sobre o Brasil e quando lhe mostrei o país no mapa ela comentou:
- Grande como a China! Devemos ter muita coisa em comum, não?
Muitas lembranças ficaram pelo caminho, outras se apagaram ao longo desses 40 e tantos anos. Visitamos inúmeras escolas, fábricas, museus, comunidades rurais e fomos homenageados com um almoço onde nos serviram o famoso pato laqueado, precedido por um longo ritual que começava com o cozinheiro exibindo o pato, tal como um mágico, já morto e depenado. Foi duro come-lo depois.
De todas as visitas, sempre iniciadas à volta de uma mesa com explicações dos dirigentes e regadas a chá e cigarro (os chineses são verdadeiras chaminés ambulantes) duas situações me deixaram impressionado, pelo inusitado (para moradores no Brasil). Nas fábricas os velhos aposentados permaneciam na ativa. Quando perguntei se seria por falta de mão-de-obra (imagina se vai faltar mão-de-obra na China!!) o dirigente me respondeu que suas presenças eram importantes para transmitir experiência e sabedoria aos mais novos.
A segunda surpresa veio nas escolas primárias, incluindo o jardim de infância. Fomos levados a uma grande sala onde as crianças se divertiam com brinquedos. Só que os brinquedos, muito simples, bolas, ursos e cubos, eram quase do tamanho dos alunos, obrigando-os a se juntarem, dois, três, quatros para movimentarem as peças. Uma cena estranha aos olhos de um forasteiro ocidental. Indaguei a razão daquela desproporção e a professora respondeu:
- Simples. É para as crianças aprenderem a importância da ação coletiva. Se distribuirmos brinquedinhos pequenos cada uma vai brincar sozinha em seu canto.
Não é o que acontece no mundo adulto de hoje? Outro dia recordei as palavras da professora ao entrar em um vagão do metrô no Rio e observar quase todas as pessoas com o nariz enfiado nos seus “brinquedinhos” digitais.
Em 2017, na recente viagem a Pequim, a Praça da Paz Celestial, palco do massacre de 1989, tinha virado atração turística, cobrava ingresso, submetia as pessoas a rigorosa revista e transbordava de gente que se espalhava pelos seus 44 hectares (0,44 kms2). Desapareceram os uniformes. A exceção da farda dos policiais e militares, os trajes não eram diferentes dos que circulam pela Disneylândia. Eu caminhava pela multidão, olhando para baixo à procura dos pés-de lótus, mas o que via eram sapatilhas, rasteirinhas, scarpins, um ou outro Dolce Gabana e Marta me apontou um Brian Atwood que custa mais de mil dólares. Pequim hoje concentra a maior coleção de grifes famosas do planeta.
Uma cidade agora vertical, brilhante, luminosa, onde a noite cai com as cores do arco-íris. As “hutongs”, casinhas alinhadas em torno de um pátio quadrado com um banheiro coletivo no centro, sumiram das ruelas, demolidas pelo progresso vertiginoso que em suas áreas ergueu lojas, galerias e prédios de apartamentos. Enfim os chineses que habitavam essas precárias habitações ganhavam um banheiro para chamar de seu.
Aquela cidade que conheci nos anos 70 e mais parecia a capital de um país sem futuro transformou-se em pouco mais de quatro décadas em uma frenética megalópole com todos os requisitos da modernidade. Circulávamos por todos os cantos – eu e Marta – mais relaxados do que em nosso país. As pessoas se mostravam atenciosas e sorridentes – o chinês tem um riso fácil (nem sempre autêntico). Quando anoitecia surgiam grupos fazendo exercícios físicos coreografados nas largas calçadas. No pátio de uma igreja próximo ao hotel onde estávamos os casais dançavam a céu aberto. A China continua hoje sendo um ponto fora da curva, mas no melhor sentido da expressão.
Li em algum lugar que no passado 80% dos chineses que saiam para estudar em universidades estrangeiras não voltavam ao país. Atualmente só não volta quem recebe ofertas irrecusáveis. Os chineses entram e saem de suas fronteiras aos borbotões, tomando o lugar dos japoneses no protagonismo do turismo internacional. A qualquer ilhota que se vá no fim do mundo lá está um bando de chineses com suas câmeras e máquinas fotográficas. É certo que o Governo restringe alguns direitos dos cidadãos – da plena informação, entre eles – mas eles gozam de algumas liberdades – de viajar, entre elas – que nunca existiram na União Soviética de onde os russos fugiam para dirigir taxis em Nova Iorque. O que fez a diferença?
Deng Xiaoping e seus sucessores adaptaram Marx aos tempos modernos. O sonho de igualdade do barbudo alemão nunca alcançado pelos soviéticos e seus “satélites” – se é que eles tentaram de verdade – estão muito mais próximos do que se pensa da realidade chinesa. O país se empenha para reduzir o nível de pobreza e botar seus habitantes dançando nas ruas. Para isso conta com a maciça presença em seu território do capitalismo universal. Uma incoerência? Uma contradição, o capitalismo dar o braço ao comunismo? E desde quando o capital se preocupa com a ideologia dos regimes políticos que lhe permitem multiplicar os lucros?
Andava pelas ruas de Pequim extasiado com aquele cenário de esfumaçada grandeza pensando que nesses 47 anos que separam minhas duas visitas, a China cresceu a uma velocidade alucinante, conduzida pelo Partido Comunista, graças a “Segunda Revolução” de Xiaoping ironicamente apoiada pelas “democracias de mercado” ocidentais.
Não pude deixar de estender meu pensamento até nosso governo do povo, para o povo e pelo povo, amargando uma comparação frustrante ao constatar que nessas quatro décadas o país avançou muito, mas atrás do trio elétrico do Primeiro Mundo e na direção da desigualdade social e econômica.
Por fim resta uma dúvida que me invadiu quando subia a Muralha da China. Será que o brasileiro está feliz em viver em uma “democracia capitalista” que exalta a liberdade e os direitos fundamentais só para privilegiar as elites?
Um empresário (lúcido) que viajou ao meu lado no retorno ao Brasil, afirmou sobre a China:
- Se eu fosse 90% da população brasileira iria preferir viver lá. Como estou entre os 10% ...
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