Entre princípios, pragmatismo e cinismo — a difícil arte de manter a sanidade num mundo em ebulição
Max Weber via a política oscilando entre dois polos: a ética da convicção (agir guiado por princípios) e a ética da responsabilidade (agir considerando as consequências práticas). Entre um polo e outro haveria espaço para o pragmatismo político, em nome de um bem maior que justificaria algumas contradições.
O dilema é um clássico da política, mas, mesmo em nossa vida pessoal, frequentemente nos vemos medindo palavras para não transformar nossas relações num inferno. Além disso, tal exercício serve também como aprendizado, pois muitas vezes os princípios que defendemos não são tão inabaláveis quanto gostaríamos. Portanto, mais que uma necessidade social, o pragmatismo pode ser uma forma de testar nossa visão de mundo.
Observando, no entanto, os diferentes graus de pragmatismo adotados em diversos temas políticos e geopolíticos atuais, atrevo-me a acrescentar um terceiro polo ao eixo original de Weber: o cinismo.
Sim, é presunçoso da minha parte, mas me parece que o mais adequado à realidade atual seria o eixo: Princípios → Pragmatismo → Cinismo.
Ainda mais quando percebemos que o cinismo a que me refiro já havia sido abordado por George Orwell com o seu duplipensar: a “arte” de sustentar contradições sem perceber.
Essa reflexão me ocorreu a partir da leitura de um excelente artigo de Henrique Zétola e Jamil Assis publicado no Estadão, com o título “Precisamos dar nome aos bois”. Nele, os autores sintetizam nossa realidade ao apontar o cinismo dos tais “guardiões da Constituição”, que mergulham cada vez mais no autoritarismo “em defesa da democracia”:
“Esse estado de exceção não é declarado, como nas ditaduras do século 20. Ele se infiltra por dentro, mantendo os ritos institucionais enquanto esvazia seus contrapesos. Giorgio Agamben descreveu esse fenômeno com precisão: não é necessário fechar o Congresso ou suspender formalmente garantias constitucionais. Basta reinterpretá-las de maneira flexível, sempre em nome de um bem maior, sob a retórica da urgência. No Brasil, a narrativa predominante é a da defesa da democracia e do combate à desinformação. Sob esse pretexto, mecanismos de controle do poder são relativizados e direitos fundamentais se tornam variáveis interpretativas.”
O artigo é um primor. Só acrescentaria as escandalosas flexibilizações na interpretação das leis para permitir, sem o menor constrangimento, que juízes do STF possam agora julgar causas em que os advogados sejam suas esposas, filhos ou qualquer outro parente — para mim, o auge do cinismo daqueles que se diziam indignados com a parcialidade de Sérgio Moro.
Na mesma semana, deparei-me com uma fala de Dilma Rousseff justificando a invsão da Ucrânia pela Rússia, repetindo os mesmos argumentos imperialistas de Putin. Note-se que, para a “democrata” Dilma, as fronteiras da Ucrânia, reconhecidas internacionalmente (inclusive pela própria Rússia à época), perdem qualquer validade. Aliás, a Ucrânia como nação precede a Rússia, possui língua própria e foi vítima de uma das maiores atrocidades da história: o Holodomor. Neste caso, para os cínicos que normalizam a violência da invasão russa, tudo é justificado — inclusive os ataques deliberados contra civis, usados como forma de pressionar a população a se render.
Já quando se trata da anunciada retomada do controle de Gaza por Israel — uma vez que o Hamas não só se recusa a devolver os últimos reféns, como também insiste em manter o poder político no território já prometendo repetir o massacre de 07/10 —, aí tudo se inverte. Pouco importa que os palestinos tenham rejeitado as principais propostas de convivência pacífica, seja pela ONU, pelo Reino Unido, EUA ou pela União Europeia, optando sempre pela guerra e perdendo-a, o que, por si só, já justificaria o controle israelense como vencedor, ainda mais contra um adversário que nunca conseguiu formar consensos mínimos para estabelecer um Estado. Não importa se Gaza é governada por um grupo terrorista cujo estatuto tem como lema a destruição de Israel. Não importa se esse grupo mantém reféns em condições sub-humanas nos túneis de Gaza. Não importa se usa a própria população como escudo humano. Importam mais as narrativas vitimistas plantadas na imprensa internacional pelo tal "Ministério da Saúde" de Gaza — narrativas que, muitas vezes, são desmascaradas pela realidade, como a recente denúncia de fome usando a foto de uma criança raquítica vítima de uma doença rara (ao lado de pais saudáveis) ou imagens fabricadas, seja por “jornalistas” ocidentais (como a famosa foto das panelas vazias, também desmascarada nesta semana), seja pela já conhecida “Pallywood”, onde um mesmo ator, de tanto interpretar papéis diferentes, virou meme.
Ou seja, na escala de “valores” da esquerda, o anti-imperialismo norte-americano ocupa o topo — mesmo que os EUA jamais tenham anexado um único quilômetro quadrado desde que assumiram o bastão do império britânico após a Segunda Guerra. Aí, o “pragmatismo” esquerdista abraça todo tipo de ditadura: desde teocracias que enforcam homossexuais e mulheres por mostrarem o cabelo em público, até regimes que praticam o capitalismo mais selvagem que a própria esquerda critica no Ocidente, explorando mão de obra escrava. Abraça também a mais imperialista das nações atuais: a Rússia — um mosaico de etnias incorporadas em pouco mais de três séculos de expansão. Não por acaso, o império russo, hoje controlado com mão de ferro pelo Hitler do século XXI, tem quase o dobro do tamanho da segunda maior nação… e ainda quer mais.
Enfim, a hipocrisia! O estado de Cinismo que melhor representa a esquizofrenia do nosso tempo.
Comentários
Postar um comentário