Pular para o conteúdo principal

Augusto Franco

Vale a leitura, porque explica o motivo de tantas experiências e iniciativas extraordinárias no campo social não irem adiante. Nascem, encantam, e morrem. São esquecidas e, muitas vezes, ou aparecem novamente em outro ponto, como novidade, ou são retomadas praticamente do zero. 

Ao permanecermos presos ao modelo milenar de estruturas baseadas em hierarquias autocráticas, isso não mudará, explica Augusto. 

Como diz o autor: “enquanto essa topologia não for alterada, com o aumento dos graus de distribuição da rede, de conectividade e de interatividade, haverá reprodução, não criação.”  

”POR QUE SOMOS SEMPRE ASSOLADOS POR IDEIAS QUE JULGÁVAMOS MORTAS


Nenhuma boa experiência dura para sempre. Vejam o caso da democracia inventada pelos atenienses em 509 a. C. Depois o autocrata-conquistador Felipe (levando a tiracolo seu filho Alexandre, "O Grande") invadiu a Ática e acabou com a festa: "- Um povo sem um senhor? Onde já se viu tal disparate? Parem imediatamente com isso". E aí a primeira democracia feneceu em 322 a. C. E durante os próximos cerca de 2.000 anos não ouvimos mais falar de democracia. Durou menos que a República romana, surgida coincidentemente no mesmo ano (mas que era apenas uma oligarquia disfarçada, jamais chegou a ser uma democracia). 


Isso vale para tudo. Todas as experiências que ousam abrir uma brecha no muro da cultura patriarcal (que ainda é dominante na civilização em que vivemos) duram pouco. São bolhas, que só existem enquanto duram. Não têm continuidade a não ser para o observador que cria uma narrativa, inventando uma linha imaginária de continuidade. Talvez lancem esporos, mas que só vão florescer novamente quando caírem em ambientes propícios. Então a questão não é a de procurar garantir a continuidade de um experimento inovador e sim a de configurar ambientes sociais capazes de evocar (ou invocar) manifestações semelhantes de uma fenomenologia da interação que consiga quebrar a reprodução de modos de vida e de convivência social patriarcais. E essas manifestações também serão zonas autônomas temporárias (como percebeu Hakim Bey, em TAZ e, depois, um pouco tardiamente, também eu percebi, em Small Bangs).


Todos nós, que tentamos, alguma vez na vida, uma inovação social, aprendemos isso por experiência própria. Quantas coisas bacanas que fizemos e que desapareceram como se não tivessem existido. Eu mesmo presenciei coisas incríveis acontecendo no entorno dos anos 2000 em processos de desenvolvimento local baseados no investimento em capital social (ou em redes). E depois não é que apenas não tivessem continuado. As próprias ideias que estavam na raiz dessa experiência evaporaram. E nas quase duas décadas seguintes as pessoas não as reconheciam, sequer as entendiam. Explicar para elas o que aconteceu era como falar grego. 


Aliás, o mesmo aconteceu com os gregos do século 5 a. C. Se Protágoras ou outro sofista, como Górgias, comparecessem à universidade de Bolonha, ou de Oxford, ou de Paris, já nos anos 1200 a 1500 da nossa era, para explicar por que o kairós tem a ver mais com a opinião (doxa) do que com o conhecimento (episteme), não seriam apenas não compreendidos, mas possivelmente sairiam acorrentados desses excelsos centros do pensamento, talvez diretamente para a prisão ou, dependendo da época e do lugar, para a fogueira.


Não há nada, na vida social, que possamos chamar de evolução, no sentido biológico do termo, de desdobramento de um processo a partir de uma qualidade intrínseca. Não há nada na sociedade como uma epigênese (capaz de manter o padrão genético anterior). O que há é a resiliência de certas configurações, que ensejam a manifestação de fenômenos semelhantes. Se não houver mudança no padrão de organização, não há alteração significativa dos fluxos interativos da convivência social, que criam e desfazem realidades, mundos. 


O que chamamos de social é um campo aberto à invenção (isso é, fundamentalmente, o que chamamos de liberdade - que só pode existir em mundos sociais), mas essa possibilidade é eliminada (ou reduzida drasticamente) pela obstrução de fluxos, pela deformação do campo introduzida por estruturas hierárquicas regidas por dinâmicas autocráticas. Enquanto essa topologia não for alterada, com o aumento dos graus de distribuição da rede, de conectividade e de interatividade, haverá reprodução, não criação. 


Por isso, os mundos em que vivemos ainda estão aprisionados, o futuro ainda está, em grande parte, fechado. Por isso, somos tão intermitentemente assolados, ao longo do que chamam de história, pela volta de antigos modelos, de antigas ideias, de antigas narrativas que imaginávamos já definitivamente enterradas. Não basta inventar novos softwares. Os padrões patriarcais vão ressurgir continuamente enquanto não alterarmos os hardwares. Está nas nossas mãos fazer isso, mas não fazemos. E não fazemos porque nós - e não algum sodalício maligno qualquer, conspirando em algum lugar secreto contra a humanidade - somos os agentes de reprodução do sistema (os Agentes Smith da Matrix).


Então, quando você for tentar fazer alguma coisa inovadora em termos sociais, não fique pensando em mudar o mundo. Você vai mudar o seu mundo - o mundo social configurado por aquela experiência particular - e isso é tudo. É possível que os esporos lançados por essa experiência caiam em outros lugares e floresçam. Mas nem você, nem ninguém, sabe quando isso vai acontecer, onde vai acontecer e se vai acontecer. E se soubesse, que graça haveria na aventura da vida?


Mudar um mundo já é o bastante. Os comportamentos coletivos mudam assim, a partir de experiências singulares e precárias e não de grandes projetos transformadores totalizantes. Pequenas mudanças, aqui e ali, vão alterando padrões de interação, possibilidades de percepção e modos de atuação. Mas nada indica que isso fará a humanidade virar algo que ela não é. E o que a humanidade é senão a sua humanidade?”

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Call Matinal ConfianceTec

 CALL MATINAL CONFIANCE TEC 30/10/2024  Julio Hegedus Netto,  economista. MERCADOS EM GERAL FECHAMENTO DE TERÇA-FEIRA (29) MERCADO BRASILEIRO O Ibovespa encerrou o pregão na terça-feira (29) em queda de 0,37%, a 130.736 pontos. Volume negociado fechou baixo, a R$ 17,0 bi. Já o dólar encerrou em forte alta,  0,92%, a R$ 5,7610. Vértice da curva de juros segue pressionado. Mercados hoje (30): Bolsas asiáticas fecharam, na sua maioria, em queda, exceção do Japão; bolsas europeias em queda e  Índices Futuros de NY em alta. RESUMO DOS MERCADOS (06h40) S&P 500 Futuro, +0,23% Dow Jones Futuro, +0,05% Nasdaq, +0,24% Londres (FTSE 100),-0,46% Paris (CAC 10), -0,83% Frankfurt (DAX), -0,43% Stoxx600, -0,59% Shangai, -0,61% Japão (Nikkei 225), +0,96%  Coreia do Sul (Kospi), -0,82% Hang Seng, -1,55% Austrália (ASX), -0,81% Petróleo Brent, +1,20%, a US$ 71,97 Petróleo WTI, +1,29%, US$ 68,08 Minério de ferro em Dalian, +0,38%, a US$ 110,26. NO DIA (30) Dia de mais ind...

Matinal 0201

  Vai rolar: Dia tem PMIs e auxílio-desemprego nos EUA e fluxo cambial aqui [02/01/25] Indicadores de atividade industrial em dezembro abrem hoje a agenda internacional, no ano que terá como foco a disposição de Trump em cumprir as ameaças protecionistas. As promessas de campanha do republicano de corte de impostos e imposição de tarifas a países vistos como desleais no comércio internacional contratam potencial inflacionário e serão observadas muito de perto não só pela China, como pelo Brasil, já com o dólar e juros futuros na lua. Além da pressão externa, que tem detonado uma fuga em massa de capital por aqui, o ambiente doméstico continuará sendo testado pela frustração com a dinâmica fiscal e pela crise das emendas parlamentares. O impasse com o Congresso ameaça inviabilizar, no pior dos mundos, a governabilidade de Lula em ano pré-eleitoral. ( Rosa Riscala ) 👉 Confira abaixo a agenda de hoje Indicadores ▪️ 05h55 – Alemanha/S&P Global: PMI industrial dezembro ▪️ 06h00 –...

Prensa 2002

 📰  *Manchetes de 5ªF, 20/02/2025*    ▪️ *VALOR*: Mercado de capitais atinge fatia recorde no nível de endividamento das empresas                ▪️ *GLOBO*: Bolsonaro mandou monitorar Moraes, diz Cid em delação          ▪️ *FOLHA*: STF prevê julgar Bolsonaro neste ano, mas há discordância sobre rito     ▪️ *ESTADÃO*: Moraes abre delação; Cid cita pressão de Bolsonaro sobre chefes militares por golpe