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O balcão das togas

 *O balcão das togas*


Por Leonardo Corrêa*


A cena é surreal, mas já não causa espanto: o deputado Rui Falcão (PT) peticiona diretamente ao Supremo Tribunal Federal pedindo que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, entregue o passaporte. Não há crime de sangue, não há dinheiro público desviado, não há sequer processo no qual ele figure como réu. Há apenas articulação política em Brasília, discutindo projeto de lei com parlamentares — algo que, numa democracia normal, é parte do ofício. Para tornar o quadro ainda mais absurdo, vale lembrar: a Constituição determina que a competência para processar governadores é do Superior Tribunal de Justiça, não do STF.


E, no entanto, o STF é chamado a intervir como se fosse delegacia de polícia, Ministério Público e juiz de primeira instância ao mesmo tempo. Tudo porque o foro privilegiado e a competência originária foram inflados até o ridículo, transformando a Corte Constitucional em balcão de litígios políticos.


O foro, que deveria ser exceção raríssima, virou regra. Para alguns, escudo; para outros, espada. No lugar da isonomia processual, temos privilégios seletivos, blindagens oportunistas e perseguições disfarçadas de legalidade. A competência originária do STF, por sua vez, transformou ministros em juízes de instrução: investigam, acusam, decretam cautelares e, ao final, julgam a própria causa.


Esse desvio tem raízes históricas. O constitucionalismo brasileiro nasceu sob forte influência norte-americana: desde Rui Barbosa, a Supreme Court of the United States (SCOTUS) foi referência para o controle de constitucionalidade difuso, em que qualquer juiz pode afastar a aplicação de uma lei inconstitucional. Mas, ao longo do século XX, enxertamos no nosso sistema a tradição europeia, sobretudo a do modelo kelseniano, que concebeu tribunais constitucionais com competências concentradas e originárias, funcionando quase como conselhos de Estado.


A Constituição de 1988 cristalizou esse hibridismo: manteve o controle difuso à americana, mas sobrecarregou o STF com poderes típicos do modelo europeu. O exemplo mais visível disso são as Ações Diretas de Inconstitucionalidade e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental. Criadas à imagem do modelo kelseniano, elas abriram caminho para que o STF passasse a decidir diretamente, em tese, sobre a validade de leis e atos normativos, sem qualquer caso concreto. O problema é que, na prática, essa porta se tornou avenida para politização: partidos e entidades recorrem ao Supremo para resolver o que não conseguem no voto popular ou no Parlamento.


O resultado é uma corte deformada. Em vez de se limitar, como a SCOTUS, a dizer em última instância o que a Constituição é, o STF se viu transformado em tribunal criminal de primeira instância para autoridades, palco de disputas políticas e, ao mesmo tempo, árbitro originário de conflitos abstratos e genéricos. Um poder sem freios, que legisla negativamente e, muitas vezes, substitui o próprio legislador. A Constituição, porém, não foi escrita para governantes, mas contra governantes: é escudo, não lança; limite, não licença. E, como escrevi em A República e o Intérprete, “o texto é o limite. E onde há limite, há Direito — onde não há, há poder”.


Diante desse quadro, surgem propostas como a da deputada Caroline de Toni (PL), que quer conceder ao Congresso Nacional o poder de anular decisões do Supremo. Eis o típico remendo populista que, em vez de restaurar a Constituição, a dilacera. Coloca Parlamento e Supremo em duelo de vaidades, sem resolver a raiz do problema. Não precisamos de um “superparlamento” capaz de desfazer sentenças — precisamos de uma Suprema Corte que deixe de se ocupar de passaportes, disputas políticas e ações diretas travestidas de política judicial.


A verdadeira emenda constitucional necessária é outra: extinguir o foro privilegiado, acabar com a competência originária penal do STF e abolir o mecanismo das ações diretas e da ADPF. Isso devolveria aos juízes de primeira instância os processos que lhes cabem e reservaria ao Supremo sua função legítima — interpretar a Constituição em última instância, diante de casos concretos. É assim que se restaura o equilíbrio republicano, é assim que a liberdade volta a ser a presunção e não a exceção.


O Brasil tentou conciliar dois modelos, americano e europeu, e acabou com um monstro institucional. Nossa experiência com o sistema híbrido não passou no “pudding test” (é comendo que se prova o pudim): o resultado está aí, servido à mesa, e o gosto é amargo. Enquanto não fizermos essa cirurgia, continuaremos a ver a Justiça convertida em espetáculo de poder, e o poder, disfarçado de Justiça.


*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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