Grande Léo!! Mais um belíssimo texto! 👏👊
Quando o Golpe Vem com Selo de Aprovação
Leonardo Corrêa*
O Estadão, em editorial publicado nesta sexta-feira, resolveu dar um salto mortal sem rede: acusou de “golpistas” os parlamentares que ousaram — vejam só — usar instrumentos regimentais para se opor à omissão cúmplice das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado. Segundo o jornal, obstruir sessões, protestar contra a blindagem permanente de ministros do STF e exigir o funcionamento das regras constitucionais é “sequestrar o Congresso”. Golpismo explícito, diz o título. Pois bem: vamos chamar de explícito o que realmente está escancarado ali — o duplo padrão moral de quem aceita o golpe, desde que venha embalado em toga ou gravata institucional.
O editorial, travestido de defesa da democracia, é um exemplo de como o conceito foi sequestrado pelo arbítrio semântico: obstruir votações virou “crime”, mas impedir que o Senado delibere — mesmo que todos os 81 senadores queiram — é, pasmem, sinal de maturidade institucional. A coragem virou subversão. A covardia virou prudência. O silêncio virou virtude.
Se um parlamentar eleito, no uso legítimo de suas prerrogativas, protesta contra a paralisia seletiva da República, é golpista. Mas se o presidente do Senado declara publicamente que não permitirá, sob nenhuma hipótese, que o Senado aprecie um pedido de impeachment de ministro do STF — ainda que assinado por todos os senadores da Casa — aí temos um herói da estabilidade democrática.
Ora, sejamos honestos: quem subverte a Constituição? Quem rasga o regimento? Quem tranca as instituições por dentro? O parlamentar que luta para que elas funcionem, ou o dirigente que anuncia, de antemão, que elas não funcionarão — “nem com 81 assinaturas”?
O Estadão quer que aplaudamos o fechamento do debate sob a justificativa de conter os perigos de quem quer abrir o debate. Quer que aceitemos como guardiões da democracia os que se recusam a deixá-la operar. Essa é a lógica invertida dos novos tempos: a democracia virou uma estátua de vitrine — bonita de se olhar, intocável, sem uso.
Chamam de golpismo a tentativa de fazer valer a separação de Poderes. Chamam de golpe o esforço de restaurar a função do Senado como instância de controle. Chamam de sequestro institucional o clamor pela aplicação da lei — desde que esse clamor venha das pessoas erradas, segundo o tribunal da virtude editorial.
Mas o que realmente está sendo sequestrado — com a ajuda luxuosa dos editoriais de circunstância — é o sentido da própria democracia representativa. Uma democracia em que a maioria do Senado não pode deliberar, mas o presidente da Casa pode vetar tudo de ofício, não é um regime de pesos e contrapesos. É um teatro com cadeados nos bastidores.
A diferença entre protesto legítimo e golpe não está no desconforto que provoca, mas na fidelidade às regras do jogo. E quem rasga as regras não é quem exige que o Senado funcione — é quem anuncia que, com ou sem maioria, o Senado não funcionará. Isso, sim, é golpismo explícito. E o mais perigoso de todos: o golpismo elegante, assinado, chancelado pela respeitabilidade das colunas de opinião.
Esse simulacro de legalidade, que transforma o zelo institucional em transgressão e a paralisia cúmplice em virtude republicana, não é senão mais uma manifestação do velho estamento burocrático descrito por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder — burocrático nas suas expansões e nos seus longos dedos, que vela sobre a política e dela se apropria para manter o jogo sob seu controle.
Herdeiro da tradição patrimonial ibérica e senhor do aparelho de Estado, esse estamento não teme a ruptura aberta, mas sim a devolução do poder à nação representada. Por isso, dissimula sua hegemonia sob a toga, esconde seu veto nas formalidades e convoca a democracia como ornamento de uma estrutura que, na realidade, recusa-se a operá-la. O que se aplaude, nesse teatro com cadeado, é a persistência da forma sem conteúdo, da regra sem eficácia, da ordem sem legitimidade. E quem aponta o dedo à disfunção torna-se, por definição editorial, o subversivo.
O mais estarrecedor é que esse cerco ao funcionamento do Senado já nem se esconde mais nas entrelinhas. Em postagem publicada na rede X, a jornalista Basília Rodrigues informou que ministros do STF ameaçam “levantar o mercúrio” contra o Congresso caso um processo de impeachment avance. Fala-se abertamente em represálias judiciais contra parlamentares, como forma de dissuasão institucional — não jurídica, mas política. A toga passa a ser não mais símbolo de imparcialidade, mas de poder preventivo, intimidatório, disciplinador. Eis o novo pacto: o Senado não toca no Supremo, e o Supremo não toca nos senadores. Mas isso não é separação de Poderes — é pacto de silêncio mútuo.
Assim funciona a democracia quando quem governa é o veto — e quando a imprensa, inclusive por um jornal que sempre respeitei, aplaude, defende e faz a advocacia de um ato tão abertamente antidemocrático.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.
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