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Um crime sem autores
Vítimas do incêndio no Ninho do Urubu foram traídas duas vezes: pelo Flamengo e pelo Estado - ESP - 24/10/2025
O incêndio no Ninho do Urubu – que, em 2019, matou dez jogadores das categorias de base do Flamengo com idades entre 14 e 16 anos – foi uma tragédia criminosa das mais atrozes na história recente do esporte brasileiro. Seis anos depois, em vez de trazer algum conforto, o desfecho da ação penal em primeira instância só aumentou a dor de suas famílias e espalhou pelo País um profundo sentimento de indignação.
Na terça-feira passada, o juiz Tiago Fernandes de Barros, da 36.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, absolveu os sete réus que ainda respondiam criminalmente pelo caso. Segundo o magistrado, não ficou demonstrado nos autos o nexo causal entre as condutas dos acusados e o incêndio – provocado, vale lembrar, por uma gambiarra na fiação elétrica do contêiner feito de alojamento para os garotos. Assim, o episódio que destroçou famílias e revelou ao Brasil o descaso do riquíssimo Flamengo com a segurança de seus atletas termina, no âmbito penal, sem culpados.
Não se questiona aqui o papel do juiz, que, diante de um processo que ele avaliou estar mal instruído, teve de decidir conforme o Direito e a ausência de provas robustas para a condenação. O que se pode afirmar, e com veemência, é que o sistema de Justiça, em sentido amplo, falhou miseravelmente com os parentes das vítimas e, em última análise, com toda a sociedade fluminense.
As famílias que entregaram seus filhos saudáveis ao Flamengo, confiando em um projeto esportivo que prometia oportunidades e ascensão social, foram traídas duas vezes. Primeiro, pelo clube, que demonstrou uma irresponsabilidade vergonhosa ao manter os adolescentes dormindo em estrutura improvisada e sabidamente insegura, vale dizer, sem aval do Corpo de Bombeiros. Depois, ao tratar a dor alheia como um problema contábil, litigando contra as próprias vítimas na tentativa de reduzir indenizações, o Flamengo revelou um desapreço moral incompatível com a sua história e com a grandeza de sua torcida.
A segunda traição veio do Estado. A incapacidade das autoridades – Polícia Civil, Ministério Público, Poder Judiciário – de conduzir um processo consistente resultou em impunidade. Ao fim e ao cabo, é disso que se trata. Mas, se confia no trabalho que fez, agora é dever do Ministério Público recorrer da sentença e demonstrar que o juiz errou ao não identificar a responsabilidade de cada um dos réus absolvidos.
Condenações sem base jurídica são indefensáveis no Estado de Direito, por mais rumoroso que seja o processo. Mas cabe, sim, denunciar a falha de um sistema de Justiça que, diante da escandalosa negligência do Flamengo, traiu a confiança da sociedade à qual serve. O resultado é esse vácuo a um só tempo legal e moral: dez jovens morreram queimados no centro de treinamento de um dos maiores clubes de futebol do mundo e não há responsáveis.
O incêndio no Ninho do Urubu não foi uma fatalidade. Foi o resultado previsível de uma cadeia de decisões temerárias e da complacência com a precariedade daquelas instalações. Se o Estado não for capaz de identificar e punir os responsáveis, consolidar-se-á a ideia de que tragédias criminosas simplesmente acontecem no Brasil – e ninguém tem nada a ver com isso.
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