*Entre zumbis e mortos vivos*
A demora na solução da situação do Banco Master faz surgir no Brasil um tipo inédito de instituição financeira, o 'banco zumbi', com a companhia de mortos vivos como o Rio Previdência
Na última sexta-feira, o Valor noticiou que, entre maio e julho deste ano, quando os problemas do Banco Master já eram conhecidos, o Rio Previdência, autarquia estadual responsável pela aposentadoria dos servidores do Estado do Rio de Janeiro, alocou perto de R$ 1 bilhão em fundos de investimento administrados pelo Master.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE) já havia alertado o Rio Previdência sobre os riscos assumidos em aplicações concentradas no Banco Master. E agora, segundo o mesmo TCE, essa concentração atingiu cerca de 25% dos recursos do fundo de pensão aplicados no mercado, ultrapassando R$ 2,6 bilhões.
O Rio Previdência sustenta que não é bem assim, pois o risco dos fundos administrados pelo Banco Master equivale ao dos ativos detidos pelos próprios fundos, e não se confunde com o risco do banco. Mas não explica o que havia de tão especial naqueles ativos dos fundos administrados pelo Banco Master, a ponto de fazê-lo investir por meio de um banco que enfrenta notória dificuldade.
Que o Rio Previdência é um morto vivo já se sabe há muito. Segundo sua avaliação atuarial em dezembro de 2024, a reserva matemática necessária para cobrir os benefícios por ele devidos era de R$ 453 bilhões, enquanto seu ativo financeiro era de apenas R$ 6,2 bilhões. Mas o seu investimento no Banco Master explicita um problema novo.
A demora na solução da situação do Banco Master faz surgir no Brasil um tipo inédito de instituição financeira. Trata-se do "banco zumbi”, incapaz de captar recursos de investidores sérios, que sobrevive diariamente à expectativa de sua iminente liquidação pelo Banco Central, mas segue perambulando pelo mercado.
Antigamente, as instituições financeiras eram liquidadas após boatos bem mais discretos – ainda que por vezes duradouros – de que estavam quebradas. No meio do caminho, muitos milhões de reais eram tomados em empréstimos de liquidez, injetados pelo supervisor bancário na esperança de evitar o pior – uma onda de quebras –, enquanto buscava um comprador.
A partir de 1995, nos governos de Fernando Henrique Cardoso, o sistema financeiro brasileiro foi saneado. O Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) resultou na expressiva redução do número de bancos privados, com estabilização de sua situação de patrimônio e liquidez. E o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes), seu irmão menos famoso, mas igualmente importante, praticamente eliminou os bancos estaduais.
Como podemos ter regredido tanto, depois daqueles avanços, a ponto de conviver com bancos zumbis? Minha aposta é em um problema que mistura conjuntura e estrutura. Na conjuntura, a estabilidade do mercado bancário, sem grandes quebras, fez com que o supervisor estatal se preocupasse em aumentar a competição. Afinal, poucos bancos muito fortes competem menos, cobram mais caro pelos serviços e têm menos estímulo à inovação.
Isso não seria um problema se, estruturalmente, a organização dos reguladores brasileiros separasse a regulação prudencial (da solvência e liquidez das instituições) da supervisão de condutas (dos deveres no relacionamento com o consumidor de produtos e serviços financeiros), a preocupação com a competição caberia a este último, isoladamente ou em conjunto com um regulador concorrencial geral, como é o Cade.
Mas em nosso país o Banco Central é encarregado de, virtualmente, todos os aspectos da regulação bancária. E quando começou a se preocupar com a competição, pode ter se descuidado do aspecto prudencial. Os ganhos concorrenciais e de bancarização foram enormes, mas o risco de insolvência pode ter aumentado.
Foi por um fenômeno semelhante que o Reino Unido, depois da crise de 2008, que levou à insolvência de importantes instituições financeiras, migrou para o modelo de dois reguladores – o chamado Twin Peaks. Na visão do parlamento daquele país, o regulador único estava focado demais em competição, e terminou descuidando do risco de quebra.
Será que estamos passando por algo parecido no Brasil? Os reiterados desfalques de recursos depositados nos bancos, por meio de fraudes no PIX, e o abuso na captação de CDBs garantidos pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC), sem que as instituições tenham ativos compatíveis com os passivos assumidos, podem indicar que sim.
Outro indício é a situação do Banco Master. Não se tem notícia anterior de instituições financeiras sofrendo, por tanto tempo, com a exposição pública de suas dificuldades de liquidez e patrimoniais, acrescida de reiteradas acusações de fraude e da rejeição, pelo órgão regulador, de uma proposta de compra por outra a instituição.
Mas já há uma certeza: aquela sucessão de eventos, sem que se alcance uma solução de mercado que permita a continuidade da instituição ou leve à sua liquidação, pariu a nova e perigosa categoria dos bancos zumbis. E não surpreende que, como em muitos filmes de terror, eles tenham a companhia de mortos vivos como o Rio Previdência.
https://valorinveste.globo.com/blogs/marcelo-trindade/coluna/entre-zumbis-e-mortos-vivos.ghtml
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