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Leonardo Correia

 A guerra que o editorial não enxerga

Por Leonardo Corrêa*

Há algo de profundamente irônico — e também revelador — quando um jornal escreve sobre a guerra do Rio a partir da tranquilidade de onde não se ouvem tiros de fuzil. O editorial do Estadão sobre a operação no Complexo do Alemão é um exercício de abstração moral: analisa o front como se fosse um gabinete, trata o terror como se fosse um problema de gestão e fala de cadáveres como quem fala de déficit fiscal.

O Estado escreve como se o Rio fosse um departamento desorganizado, e não um território sob ataque. Sua tese — de que a tragédia é resultado de “ineficiência administrativa” — é a típica análise de quem nunca ouviu o som de um fuzil. É a falácia da racionalização burocrática, que transforma guerra em planilha. Para os editorialistas, a solução está na “coordenação entre os entes federativos”, como se o tráfico respeitasse o pacto federativo.

Há também a falácia da falsa equivalência moral: o texto equipara a operação no Alemão à Operação Carbono Oculto, como se corrupção e narcoterrorismo fossem expressões de um mesmo fenômeno — a “inépcia do Estado”. É uma confusão de categorias, um erro conceitual travestido de erudição. Corrupção se investiga; guerra se enfrenta.

Em seguida vem a falácia do falso dilema: ou a polícia age com “inteligência” ou com “violência”. Ora, não há estratégia que dispense força quando o inimigo tem drones, bunkers e poder territorial. Nenhuma “operação inteligente” substitui o simples fato de que, em uma guerra urbana, a escolha não é entre agir bem ou mal — é entre agir ou morrer.

Rodrigo Pimentel não é um teórico de segurança pública nem um comentarista de estúdio. É ex-capitão do BOPE, autor de Elite da Tropa e roteirista de Tropa de Elite 1 e 2. Um homem que conhece o Rio não por manchete, mas por mira telescópica. Viveu o que o resto do país apenas assiste. E fala com a autoridade de quem perdeu amigos — como o inspetor Marcos Vinícius, “um camarada que já era avô e morreu tentando prender assassinos”.

Em entrevista ao Antagonista, Pimentel expõe o que os editorialistas do Estadão preferem suavizar com eufemismos. Ele descreve o cotidiano de uma guerra irregular: drones lançando explosivos sobre policiais, bunkers subterrâneos abrigando chefes do Comando Vermelho, favelas inteiras controladas por facções que cobram tributos e impõem barricadas, e famílias expulsas de casa por simples pichações — “vaza ou morre” — em muros de bairros de Fortaleza e Salvador. O que ele narra não é criminalidade, é domínio territorial armado.

Pimentel insiste que essa guerra não é mais sobre drogas — é sobre poder. O tráfico virou Estado paralelo, com regras, economia e soberania própria. Ele denuncia que o governo federal se recusa a reconhecer o caráter bélico da crise e que ministros tratam o conflito como “problema de drogas”, quando o que está em curso é uma disputa de soberania. Ele relata que drones sobrevoam as operações a 400 metros de altura, que policiais enfrentam armas de guerra com blindados sucateados, e que o Estado está sozinho — sem o apoio das Forças Armadas, sem blindados da Marinha, sem a presença da União.

Em outro momento, Pimentel explica que a chamada “inteligência policial” existe — há mapeamento de paióis, de rotas de fuga, de estruturas criminosas — mas que isso não elimina o confronto: “para chegar ao chefe da facção, não há outro caminho senão atravessar o fogo”. E lembra o óbvio que a retórica editorial ignora: o morador da favela odeia a operação policial, mas odeia ainda mais acordar com uma barricada na porta de casa.

E é aí que se revela o verdadeiro sentido de soberania — não a caricatura institucional que o jornal evoca, mas o conceito inscrito no parágrafo único do artigo 1º da Constituição: “Todo o poder emana do povo.” O povo — isto é, cada um de nós, individualmente — é o verdadeiro soberano. Quando o morador do Alemão precisa pedir permissão a uma facção para sair de casa, é ele, e não o Estado, quem perde sua soberania.

Soberania, portanto, não é um problema de “coordenação federativa”; é o direito de o cidadão não viver sob a tirania do fuzil. O Estado trai esse direito quando hesita, quando reduz o terror a “ineficiência administrativa”, quando escreve editoriais sobre o caos em vez de enfrentá-lo.

Enquanto os editorialistas de O Estado continuam discutindo o “modelo de segurança pública”, Pimentel fala do que realmente importa: sobreviver num país onde o crime já governa territórios. E talvez por isso ele soe tão incômodo para quem ainda acredita que o Rio é uma questão de política pública. O Rio já passou dessa fase. O que se discute agora é se o Estado ainda existe — e se o povo, soberano em teoria, continuará refém na prática.

O mais curioso é que o próprio Estadão parece não ler o Estadão. Nas páginas seguintes ao editorial, o jornal publica reportagens que desmentem o moralismo que adota no texto de opinião. Enquanto o editorial falava em “ação sangrenta e desarticulada”, as matérias descreviam uma operação planejada, baseada em interceptações judiciais, monitoramento aéreo e estratégia de cerco tático (“muro do BOPE”). O mesmo jornal que via desordem editorialmente mostrava, em sua editoria de Metrópole, uma ação com inteligência, método e respaldo judicial.

As mesmas páginas relatavam também o que o editorial escolheu calar: as atrocidades das facções, os relatos de tortura, sequestro e execução de moradores, e a existência de tribunais do tráfico — uma paródia grotesca de sistema judiciário, onde criminosos decidem quem vive e quem morre. E mais: o jornal reconhecia que há, no Congresso, um debate sério sobre classificar as facções como organizações terroristas, dada sua estrutura militar e poder de intimidação. O editorial, no entanto, preferiu fingir que se tratava de um problema administrativo, como se o Rio precisasse de “melhor coordenação” e não de reconquista territorial.

Até o juiz que autorizou a operação, Leonardo Rodrigues da Silva Picanço, afirmou em sua decisão que as prisões eram de “necessidade imperiosa” e que as facções representam risco concreto à ordem pública. Em outras palavras: o magistrado, que conhece o processo e as provas, viu o que os editorialistas se recusam a enxergar. O Estado brasileiro enfrenta um inimigo armado, organizado e cruel.

Nada disso, porém, aparece no editorial. E não por falta de informação — afinal, estava tudo nas páginas do próprio jornal. O problema é de conveniência moral: as reportagens informam, o editorial edita; os repórteres descrevem a guerra, os articulistas fingem uma gestão; o jornal noticia o terror e, logo adiante, o relativiza. É o luxo de quem confunde neutralidade com covardia.

No fim, o Estadão publica um retrato de si mesmo: um jornal que denuncia a barbárie na reportagem e a desculpa no editorial. Um jornal que mostra a guerra, mas escreve como se vivesse em paz.

E digo isso sem qualquer pretensão de especialista em segurança pública. Não sou policial, estrategista nem estudioso do tema — sou apenas um cidadão que viveu a maior parte da vida no Rio de Janeiro e que, como tantos, acabou se mudando para São Paulo, dentre outras coisas, movido pela angústia de viver em uma guerra urbana. Escrevo não como técnico, mas como alguém que conhece o medo. E talvez por isso me espante tanto ver, de longe, quem trata essa tragédia como um debate de gabinete.

*Leonardo Corrêa – sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela University of Pennsylvania, Co-Fundador e Presidente da Lexum e autor do livro A República e o Intérprete — Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores.

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