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Paulo Baía

 O eco sombrio de Viagem ao Fim da Noite no presente


               * Paulo Baía 


Publicado em 1932, Viagem ao Fim da Noite, de Louis-Ferdinand Céline, é uma dessas obras que atravessam as décadas como ferida aberta. Não se trata apenas de um romance monumental, inovador em sua forma e radical em sua visão de mundo. É também um testemunho que, apesar de nascido em um contexto específico, continua a se projetar sobre a atualidade com uma potência inquietante. Seu impacto não está apenas na literatura, mas no modo como revela as engrenagens de um mundo em colapso, expondo a falência da civilização ocidental diante da guerra, da exploração e da miséria. E é precisamente por isso que a leitura desse livro, hoje, adquire uma dimensão ainda mais urgente, quando as ideias neofascistas voltam a ocupar o primeiro plano da política no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.


A narrativa segue Ferdinand Bardamu, alter ego do autor, por uma trajetória que percorre os cenários mais devastadores da modernidade. Na Primeira Guerra Mundial, não há glória nem heroísmo, mas apenas carnificina absurda e desprovida de sentido. Nas colônias africanas, não se encontra o mito civilizador europeu, mas a brutalidade nua do colonialismo: terras saqueadas, populações reduzidas a instrumentos, vidas esmagadas pelo lucro. Nos Estados Unidos, Céline observa o capitalismo industrial com olhar ácido, revelando a mecanização da existência, a frieza de um sistema que transforma tudo em mercadoria, inclusive o humano. O retorno a Paris não traz alívio, apenas confirma a miséria das periferias, a precariedade do trabalho, a doença e o abandono social. O livro é um mapa da ruína, uma geografia do desespero humano.


A importância dessa narrativa está no fato de que ela não é apenas um registro histórico. Os horrores descritos por Céline permanecem reconhecíveis no presente. A guerra, em suas novas formas, continua a devastar populações inteiras, seja na Ucrânia, seja no Oriente Médio, seja nas periferias urbanas onde a violência policial e a criminalidade armada assumem contornos de guerra civil. O colonialismo, formalmente encerrado, renasce em novas roupagens: neocolonialismo econômico, exploração de recursos naturais por corporações globais, submissão de povos inteiros a dívidas impagáveis. O capitalismo, em sua versão digital e financeira, ampliou a desumanização, reduzindo a vida a algoritmos, estatísticas e descartabilidade. A miséria urbana, que Céline descreveu em Paris, ecoa hoje nas favelas brasileiras, nas periferias americanas, nos guetos europeus.


O estilo do romance reforça essa atualidade. Céline escreve como quem fala, em frases curtas, quebradas, com ritmo irregular que imita o fluxo oral. Essa prosa nervosa e cortante aproxima o texto da realidade, conferindo-lhe uma força visceral. Não há embelezamento, mas brutalidade. Não há idealização, mas ironia cruel. Essa estética influencia profundamente a literatura do século XX, abrindo caminhos para Sartre, Beckett, Miller e tantos outros. E permanece viva, porque captura algo essencial da experiência moderna: a sensação de fragmentação, de descontinuidade, de desesperança que também define o século XXI.


A biografia do autor, porém, não pode ser ignorada. Céline, além de médico atento à vulnerabilidade humana, foi também um homem que abraçou ideologias de ódio. Seus panfletos antissemitas e sua colaboração com o nazismo são manchas que o acompanham para sempre. Essa contradição entre a obra e a vida levanta questões éticas inevitáveis. Como ler um escritor que, em sua prática política, apoiou a barbárie? Como conciliar a genialidade literária com o abismo moral? Não há resposta simples, mas talvez seja justamente essa tensão que torna Viagem ao Fim da Noite ainda mais importante. O livro mostra o que a literatura pode revelar e, ao mesmo tempo, o que não consegue impedir: a adesão de seu autor àquilo que denunciava indiretamente em sua prosa.


Esse paradoxo ganha relevância em um tempo em que o neofascismo avança. No Brasil, vimos multidões seduzidas pelo discurso do ódio, pela promessa de ordem fundada na violência, pela negação das instituições democráticas. Nos Estados Unidos, Donald Trump e seu movimento político normalizaram a intolerância, o racismo e o desprezo pelas regras constitucionais. Na Europa, partidos de extrema-direita crescem em diferentes países, alimentando-se do medo da imigração, do ressentimento social e da nostalgia de um passado autoritário. O mundo parece reviver, sob novas formas, as condições que permitiram o fascismo nos anos 1930.


Nesse cenário, a advertência do escritor comunista Paul Nizan volta a soar atualíssima. Ao analisar Viagem ao Fim da Noite em 1932, ele observou que a revolta pura de Céline poderia levá-lo a qualquer lado: até os comunistas, contra os comunistas ou a lugar nenhum. E de fato, a trajetória do autor mostrou como essa rebeldia absoluta desembocou em adesão ao pior. Hoje, vemos esse movimento repetir-se. O desencanto de milhões com a política, a desesperança diante das crises econômicas, a sensação de abandono em sociedades desiguais transformam-se em terreno fértil para o fascismo. O niilismo político, longe de ser resistência, pode ser a porta de entrada para o autoritarismo.


Ler Céline hoje é um exercício de vigilância. O romance revela que a simples denúncia da ruína não basta. É preciso construir horizontes, alternativas, projetos que não se deixem capturar pelo vazio. O fascismo se alimenta da desesperança, da descrença, do cansaço com a democracia. É nesse ponto que Viagem ao Fim da Noite se torna um alerta: mostra como a literatura pode expor o horror, mas também como o horror pode ser absorvido, normalizado e até celebrado.


O presente confirma essa dinâmica. As descrições de corpos devastados pela miséria, pela doença e pela violência encontram eco nas imagens contemporâneas de migrantes rejeitados nas fronteiras da Europa, de famílias separadas nas fronteiras americanas, de jovens negros mortos em favelas brasileiras. A crítica à engrenagem capitalista ecoa na precarização do trabalho digital, na uberização que transforma pessoas em números de aplicativo, na lógica financeira que decide o destino de países inteiros. O que Céline viu como escuridão da modernidade continua a ser parte integrante de nosso cotidiano.


Mas é importante destacar também a dimensão literária. Viagem ao Fim da Noite não é apenas denúncia política ou testemunho histórico. É arte. Sua prosa tem força estética inigualável, capaz de capturar em palavras o que muitas vezes escapa à análise sociológica ou filosófica. Essa dimensão artística é o que mantém o livro vivo, mesmo diante da condenação ao autor. Ler Céline é sentir o impacto da literatura em sua capacidade de traduzir a experiência humana em sua forma mais brutal.


No entanto, essa mesma arte não nos permite ingenuidade. Precisamos lê-la com consciência crítica, reconhecendo que a desesperança absoluta pode abrir caminho para a barbárie. O romance não nos oferece saídas, não aponta para utopias, não constrói alternativas. Ele se fixa no vazio, no ceticismo, no sarcasmo. E justamente por isso, em um tempo em que a desesperança é explorada politicamente pelos neofascismos, é necessário ler Céline como advertência: não podemos parar na denúncia. É preciso resistir, construir, propor.


Viagem ao Fim da Noite é um clássico incômodo, e talvez seja essa sua maior virtude. É inesquecível pela força estética, perturbador pelas contradições que encarna, atual pela maneira como ilumina os riscos de nosso tempo. Ler esse livro hoje é reconhecer que a literatura não salva, mas alerta. É constatar que o horror descrito por Céline permanece vivo, que a barbárie pode voltar a qualquer momento, que a noite continua à espreita.


No fim das contas, a importância contemporânea de Viagem ao Fim da Noite reside em sua capacidade de nos colocar diante de nossas próprias contradições. Ele nos mostra que a desesperança pode corroer a dignidade, que a revolta sem horizonte pode se transformar em fascínio pelo autoritarismo, que a miséria pode ser normalizada. Mas também nos lembra que a literatura, mesmo quando escrita por mãos manchadas, pode iluminar verdades que precisamos enfrentar. Ao ler Céline, somos obrigados a nos perguntar: o que fazemos com o horror que nos é revelado? Aceitamos sua lógica ou buscamos resistir a ela?


Em um mundo marcado pela ascensão das ideias neofascistas, Viagem ao Fim da Noite é mais do que um romance sombrio do passado. É um espelho incômodo, que reflete as trevas do presente e nos desafia a recusar sua sedução. É um livro que exige leitura atenta, lúcida e crítica, porque só assim poderemos atravessar a noite sem nos perder em seu fascínio destrutivo.


             * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

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