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Paulo Baía

 A crosta sígnica da existência humana **


      * Paulo Baía 


“Compreender, interpretar é traduzir um pensamento em outro pensamento num movimento ininterrupto”, escreve Lucia Santaella, em um de seus trechos mais luminosos sobre a semiótica. E prossegue: “É porque o signo está numa relação a três termos que sua ação pode ser bilateral: de um lado representa o que está fora dele, seu objeto, e de outro lado, dirige-se para alguém em cuja mente se processará sua remessa para um outro signo ou pensamento onde seu sentido se traduz”. Santaella, nesse gesto de precisão conceitual e lirismo poético, revela o que somos: seres aprisionados e libertos por signos, criaturas que respiram significados, que só existem porque habitam símbolos que, ao mesmo tempo, nos aproximam e nos afastam do real.


Essa formulação ecoa o núcleo da semiótica de Charles Sanders Peirce. O signo, em sua concepção, é triádico: há sempre um objeto, um signo e um interpretante. E não há fim no processo. Cada interpretação conduz a outra, num encadeamento infinito de semiose. O mundo, portanto, não é dado em sua nudez, mas sempre envolto por representações, como uma pele que recobre o sensível. Santaella lembra: a palavra “mesa” não é a mesa em si, mas remete a um outro signo, a outro conceito, a uma cadeia de significações. Esse deslocamento incessante constitui, ao mesmo tempo, a miséria de nossa condição, pois jamais tocamos o real puro, e sua grandeza, pois é esse movimento que nos permite construir ciência, poesia, memória, política, religião.


Claude Lévi-Strauss, em sua antropologia estrutural, mostrou que o signo é mais do que mediador: é a própria estrutura do mundo social. O mito, para ele, não é simples relato, mas gramática de pensamento, linguagem condensada que organiza o caos e institui o sentido. A crosta sígnica, que em Santaella é camada que nos afasta do contato direto com o sensível, em Lévi-Strauss é matriz simbólica, condição de inteligibilidade, a arquitetura invisível que nos permite dar forma à experiência. A leitura estruturalista da cultura mostra como os signos classificam, ordenam e estabilizam, tornando o real habitável.


Clifford Geertz levou esse raciocínio adiante ao definir cultura como “teias de significados que o homem mesmo tece e nas quais está suspenso”. A análise cultural, disse ele, não é ciência experimental em busca de leis, mas ciência interpretativa em busca de significados. A metáfora do dicionário usada por Santaella, cada palavra se explica por outra palavra, é o exemplo mais simples dessa condição. Para Geertz, o etnógrafo deve produzir uma “descrição densa”, captar não apenas o gesto visível, mas o campo de significados que o envolve, porque o humano nunca é apenas ação, mas sempre interpretação.


Pierre Bourdieu acrescenta outra dimensão ao problema: os signos são também instrumentos de poder. O capital simbólico estrutura a vida social tanto quanto o econômico, porque títulos, rituais, estilos de linguagem e marcas de distinção produzem hierarquias, naturalizam desigualdades e legitimam a dominação. A crosta sígnica de Santaella, sob a lente de Bourdieu, é campo de luta: um espaço onde se disputam sentidos, onde se define o legítimo e o ilegítimo, o culto e o vulgar, o válido e o descartável.


Roland Barthes, por sua vez, alerta que o mito moderno transforma o contingente em eterno, o histórico em natural. Para ele, os signos são sempre políticos, porque nunca são neutros: já carregam ideologias, já transmitem interpretações mascaradas de obviedade. Santaella fala da miséria da condição simbólica; Barthes lembraria que é nessa miséria que se instala a ideologia, que se naturalizam narrativas, que se legitima o poder. O signo, ao designar, já interpreta, e ao interpretar, já oculta.


Jacques Derrida radicalizou essa percepção ao falar da différance, esse jogo incessante em que o sentido nunca se fixa, mas se adia, sempre remetido a outro signo. O que Santaella chama de fuga interminável do significado encontra, em Derrida, sua formulação filosófica mais extrema: não existe presença plena, apenas vestígios e rastros que se diferem e se diferenciam. A condição humana é, assim, ser habitante de um campo de adiamentos, condenada à tradução interminável.


Se olharmos para Michel Foucault, o problema se transforma em arqueologia do saber. Os signos não apenas traduzem o real, mas constituem regimes de verdade, sistemas discursivos que delimitam o que pode ser dito, visto e pensado em determinada época. O signo é dispositivo, e como tal, é também prática de poder e saber. A crosta sígnica de Santaella, lida com Foucault, é a episteme: o campo invisível de regras que organizam discursos e determinam a inteligibilidade de uma sociedade.


Durkheim, no nascimento da sociologia, também compreendeu a centralidade dos símbolos. Para ele, as representações coletivas eram a alma das sociedades, e os ritos eram momentos de efervescência nos quais os indivíduos experimentavam o poder do coletivo simbolizado. O totem não era apenas um objeto, mas a materialização do grupo, a condensação simbólica da força social. Nesse sentido, a crosta sígnica não é apenas obstáculo, mas experiência de sacralidade, mediação necessária entre indivíduos e sociedade.


George Herbert Mead, precursor da escola interacionista, destacou que o self humano só emerge no campo da linguagem e da interação simbólica. A identidade não é algo dado, mas algo produzido no jogo de signos, na constante interpretação do olhar e da fala dos outros. A crosta sígnica, aqui, é condição de subjetividade: só nos tornamos sujeitos porque somos atravessados por signos.


Norbert Elias, em sua análise da civilização, mostrou como os processos sociais se traduzem em códigos simbólicos de comportamento: etiquetas, modos de falar, formas de vestir e comer. A sociedade se escreve sobre os corpos por meio de signos e símbolos que disciplinam gestos e regulam interações. O indivíduo, imerso nessa rede, internaliza regras como se fossem naturais. O signo, nesse caso, é o próprio mediador da civilidade.


Max Weber também ofereceu contribuições importantes. Para ele, a ação social é sempre orientada por significados. O sociólogo deve interpretar o sentido que os atores atribuem às suas ações, e é esse sentido, sempre simbólico, que organiza as condutas sociais. O mundo humano não se define apenas pela causalidade, mas pelo tecido de interpretações que atribuem finalidade às práticas.


Erving Goffman, com sua sociologia dramatúrgica, revelou como a vida cotidiana é estruturada em encenações simbólicas. Cada interação social é uma performance de signos: gestos, expressões, modos de vestir, posturas, que transmitem significados e produzem identidades diante de plateias sociais. A crosta sígnica é, então, o próprio palco da vida, onde se encenam papéis e se negociam legitimidades.


Victor Turner, estudando ritos de passagem e símbolos em sociedades tradicionais, mostrou como os signos condensam múltiplos significados e atuam como operadores de transformação. O símbolo, para Turner, é polissêmico, processual, capaz de organizar transições de estado social e de produzir momentos de comunhão. A linguagem simbólica não é apenas representação, mas força de transformação.


No presente, percebemos que nunca vivemos de maneira tão intensa a condição descrita por Santaella. Nas redes digitais, nos algoritmos, na circulação vertiginosa de imagens, memes, palavras, slogans e narrativas, a semiose infinita se torna experiência cotidiana. Cada enunciado é já outro enunciado, cada sentido se multiplica, cada narrativa se contradiz, cada símbolo se volatiliza em mil versões. A crosta sígnica se torna oceano de signos, sem centro nem borda, onde cada interpretação é provisória e cada significado é disputado com ferocidade.


Esse é o paradoxo essencial: somos seres condenados a nunca alcançar o real em sua nudez, mas também seres agraciados pela possibilidade infinita de criação. A crosta sígnica, que ao mesmo tempo nos aprisiona e nos liberta, é a superfície onde se inscrevem nossas práticas sociais, nossas instituições, nossas artes, nossas religiões, nossas ciências, nossas lutas políticas.


Ler Santaella, ao lado de Peirce, Lévi-Strauss, Geertz, Bourdieu, Barthes, Derrida, Foucault, Durkheim, Weber, Mead, Goffman, Turner e Elias, é compreender que o humano não existe fora da linguagem, que não há sociedade fora dos signos, que não há cultura fora das redes de significados. Nossa miséria é nunca estar diante das coisas mesmas. Nossa grandeza é poder reinventar incessantemente os mundos que habitamos. Talvez seja nesse intervalo, nesse hiato entre signo e coisa, entre sentido e real, entre palavra e corpo, que resida o núcleo mais belo e mais doloroso da experiência humana: a certeza de que o real nunca se oferece puro, mas também a esperança de que, ao transformar os signos, possamos transformar o próprio real.


             * Sociólogo , cientista político e professor da UFRJ 

            

             ** Este texto foi apresentado em uma palestra na cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul, na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), em outubro de 2018.

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