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Amilton Aquino

 Para cada problema complexo, existe uma solução simples… e estúpida, já dizia o jornalista norte-americano H. L. Mencken. E foi exatamente isso que Trump fez nesta semana. O mercado relutou em acreditar, até o último minuto, que algo tão estúpido realmente aconteceria. Mas aconteceu. As bolsas norte-americanas, obviamente, despencaram, arrastando consigo os mercados do mundo todo.


E qual foi a fórmula encontrada por Trump para justificar tais aumentos de tarifas? Simples: ele listou os países com maior superávit percentual com os EUA e aplicou categorias de taxação. As mais altas, como no caso do pobre Camboja, que sofreu uma tarifa de 49%, até as mais baixas, como a de 10% imposta ao Brasil — um dos poucos países com o qual os EUA ainda têm leve superávit comercial.


Genial! Os EUA adotando a fórmula brasileira de industrialização. A economia mais aberta do mundo, com um dos melhores índices de produtividade, imitando uma das mais fechadas, com produtividade estagnada há décadas. Quem diria!


O mundo está mesmo de pernas para o ar. De repente, os EUA — bastião do capitalismo mundial, acusados no passado pela nossa esquerda de querer impor a ALCA à América Latina, defensores do livre mercado e da globalização — seguem hoje na direção oposta. Enquanto isso, a “comunista” China recorre à OMC (organização criada e bancada pelos próprios EUA para promover o comércio global), reclamando do protecionismo norte-americano!


Como chegamos a este ponto?


Basicamente, os orientais aprenderam a criar riqueza como nunca, usando a própria fórmula do liberalismo: produzir mais barato para as massas, com mão de obra e matéria-prima acessíveis. Com os lucros advindos do ganho de escala, investiram em tecnologia e tornaram-se também produtores de inovação.


E o que Trump propõe? Justamente o contrário, atacando os dois pilares da competitividade asiática. Vejamos: ao aumentar as tarifas de importação, ele encarece a matéria-prima utilizada pela própria indústria para gerar produtos de maior valor agregado. E, ao deportar imigrantes, torna a mão de obra ainda mais cara. Ou seja, Trump está criando as condições para o pior dos mundos: a estagflação, a combinação de inflação com estagnação.


Mas voltemos aos asiáticos. Sim, os EUA têm motivos para se sentirem lesados por “financiar” o enriquecimento de seus principais concorrentes — algo que ocorre desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Começando pelo Japão, que recebeu pesados investimentos norte-americanos para contrabalançar a ascensão comunista da China. O Japão aproveitou bem o impulso e se tornou, nos anos 1980, a segunda maior economia do mundo — até que cedeu às pressões dos EUA para reduzir os desequilíbrios e estagnou.


Depois vieram os Tigres Asiáticos: Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e Hong Kong — este último, colônia britânica devolvida à China em 1997. Taiwan já está na fila.


Por fim, a China. Um colosso de 1,4 bilhão de habitantes, rica em recursos naturais e com uma cultura milenar, disciplinada e hierarquizada — ingredientes perfeitos para ascender como potência ao adotar a máquina capitalista de produção de riquezas. E, pasmem, também com ajuda americana!


Inicialmente, copiavam tudo o que o Ocidente produzia de melhor. A qualidade inferior era compensada por preços baixíssimos, resultado de fatores como fretes baratos, controle de câmbio e práticas de dumping.


Enquanto o Ocidente se burocratizava, multiplicando leis, regulações, direitos e restrições ambientais, os chineses nadavam de braçada, tomando mercados e estendendo seus tentáculos em todos os continentes.


Mas não é só a China que lucra com o desequilíbrio global. Há outros emergentes asiáticos, mas quatro grandes economias se destacam no modelo exportador de produtos de alto valor agregado: China, Coreia do Sul, Japão e Alemanha. Em contrapartida, quatro países anglo-saxões — EUA, Reino Unido, Canadá e Austrália — tornaram-se os principais destinos desses produtos, com parte de suas indústrias migrando para os concorrentes.


Como corrigir essas distorções? Eis a questão.


O primeiro passo é refletir sobre os gastos dos próprios EUA. De fato, os americanos não podem continuar se endividando infinitamente. O que fazer, então, para conter os gastos? Nesse ponto, o governo Trump acerta com o chamado DOGE — Departamento de Eficiência Governamental. Não dá mais para continuar bancando a polícia do mundo nem ser, de longe, o maior financiador de organismos internacionais e ONGs que, há décadas, agem contra os próprios interesses dos EUA.


Sim, os EUA têm razão em cobrar maior investimento dos europeus em defesa. Têm razão em criticar a burocracia e as barreiras alfandegárias europeias. No entanto, Trump joga no lixo décadas de esforço para construir uma ordem internacional que garantiu as décadas mais pacíficas e prósperas da história da humanidade. E, de quebra, empurra antigos aliados para os braços da China, ao tratá-los como inimigos da noite para o dia.


Todo mundo sabe que o principal rival é a China. Então, por que taxar todos ao mesmo tempo? Por que comprar briga com todos?


Certamente Trump tenta seguir o conselho de Maquiavel: fazer o bem aos poucos e o mal de uma só vez. Politicamente, até faz sentido. Mas, economicamente, ele está quebrando as cadeias comerciais globais, gerando um nível de incerteza que pode levar o mundo à recessão.


O caminho mais inteligente seria estreitar os laços com aliados históricos, reduzir as disparidades tarifárias e unir forças contra a China — a maior beneficiária da ordem liberal criada pelos EUA e, hoje, uma de suas principais sabotoras, ao lado de Rússia, Irã e Coreia do Norte.


E por falar na Rússia, eis que Trump a isenta do tarifaço. É muito xadrez 4D.


Em meio a toda essa confusão, o Brasil sai bem na foto. Além de receber a menor tarifa, pode até ganhar espaço no mercado global de commodities com as retaliações às exportações norte-americanas. Mas isso nem é o mais importante. O enfraquecimento da economia dos EUA pode antecipar a queda dos juros. Não por acaso, os mercados futuros no Brasil recuaram, reduzindo a pressão sobre o Banco Central para elevar a Selic para os 15% que já estavam precificados. De quebra, provocou uma queda expressiva no preço do petróleo. Um presentão de Trump para Lula!


Enfim, em pouco mais de dois meses, Trump não só feriu de morte a OTAN como desmontou a ordem mundial construída por décadas com base no soft power norte-americano — e está prestes a jogar o mundo em recessão. A esquerda anti-capitalista, anti-globalização e anti-livre mercado deve estar comemorando, de mãos dadas com os reacionários trumpistas que sonham com o retorno à era colonial, a era dos fortões.

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