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Paulo Baía

 A máquina de repetir:

manifesto sobre o banimento do pensamento nas ciências humanas universitárias


            * Paulo Baía 


“A verdade é filha do tempo, não da autoridade.”

Galileu Galilei


As engrenagens da produção acadêmica giram com precisão quase industrial. Os Qualis, os rankings, os fatores de impacto e os critérios de indexação formam um sistema implacável que transforma o pensamento em mercadoria. Não há tempo para hesitar, para errar, para arriscar. É preciso publicar. Publicar sempre. Publicar rápido. Publicar muito. E publicar dentro dos moldes. A escrita universitária, sob o jugo dessas exigências, tornou-se uma prática burocrática e previsível. O que antes poderia ser um gesto inaugural de reflexão sobre o mundo converte-se em exercício de replicação de fórmulas consagradas. Escrever tornou-se um gesto automático, domesticado, repetido. Um protocolo a ser cumprido.


A criatividade tornou-se um risco. A originalidade passou a ser suspeita. O pensamento, quando não se alinha ao vocabulário legitimado pelo circuito dominante, é ignorado, rejeitado ou corrigido. As revistas acadêmicas, digitais ou impressas, funcionam como pequenos clubes de afinidades. Círculos fechados onde a repetição de vozes, abordagens e referências forma uma liturgia que sufoca qualquer respiração nova. As edições impressas, cada vez mais raras, já não interessam. Tornaram-se caras, obsoletas, silenciosas. O digital não é apenas uma mudança de suporte, mas uma mudança de lógica, de controle, de domesticação. A tela substituiu o papel, mas não substituiu a rigidez.


Nas revistas digitais, tudo parece democrático. Mas o que se vê é a domesticação da crítica. Antes mesmo de um novo número ser publicado, já se sabe o que virá. Os títulos mudam. Os nomes variam. Mas a substância permanece. Os objetivos são conhecidos. O tom é previsível. O vocabulário é o mesmo. O que se escreve não brota da urgência do mundo. Brota das exigências da plataforma. Publica-se para pontuar. Publica-se para cumprir prazos. Publica-se para atender a metas produtivistas. A escrita nasce já acorrentada, modelada por normas que asfixiam e limitam o que poderia ser livre, imprevisto e corajoso. Não há surpresa, não há espanto, não há desvio.


No lugar de uma universidade que estimule a ruptura, promove-se o conformismo. O gesto inaugural do pensamento foi substituído por um silêncio obediente, camuflado sob camadas de jargão. Jovens pesquisadores aprendem rápido a adaptar-se ao que é aceito. Não podem inventar conceitos. Não podem propor estilos. Não podem arriscar vozes. A linguagem acadêmica tornou-se prisão. Frases longas. Jargões ocos. Referências obrigatórias. Nada pode ser dito com clareza demais. Com emoção demais. Com vida demais. A precisão, que deveria ser uma virtude, tornou-se couraça. A linguagem virou um simulacro de rigor.


A produção acadêmica virou contabilidade. Mede-se o valor do pensamento pela quantidade de artigos publicados. O que se premia não é a transformação da realidade, mas a quantidade de inserções em revistas indexadas. A lógica é produtivista. Os programas de pós-graduação pressionam os docentes. Os docentes pressionam os discentes. E todos seguem um mesmo caminho: o da adaptação. O saber, que poderia ser travessia e experiência, torna-se expediente, estratégia, sobrevivência. Um cálculo contínuo entre o que se pode dizer e o que será aceito pelo algoritmo da Capes.


E o mais simbólico – e devastador – é o desaparecimento da palavra “intelectual” das ciências humanas universitárias. Intelectual tornou-se sinônimo de desvio. De desajuste. De falha no sistema. A universidade não quer mais intelectuais. Quer acadêmicos. Quer Lattes robusto, recheado de artigos em revistas bem ranqueadas. Quer produtividade medida por métricas. O pensamento que atravessa o mundo e se dirige à sociedade foi expulso das bancadas. Já não tem lugar nos pareceres. Já não serve aos editais. Ser intelectual é um risco. É uma anomalia. É como estar no lugar errado, falando uma língua esquecida.


O intelectual hoje mora do lado de fora. Está nas artes, no cinema, na dramaturgia, na poesia, na literatura. É lá que o pensamento pulsa com liberdade. É lá que a linguagem respira. É lá que a crítica se ergue com coragem e forma. A universidade expulsou o intelectual. E com isso perdeu a sua alma. Nas ciências humanas universitárias, o que se chama “pesquisa” tornou-se prática disciplinar. Um saber asséptico, domesticado, que se dobra à lógica da produtividade. Os poucos que ainda insistem em pensar como intelectuais são olhados com desconfiança. Como se fossem distraídos. Como se não entendessem a regra do jogo.


E no entanto, é fora dessas regras que o pensamento vive. Fora do Qualis. Fora do ranking. Fora das universidades que se orgulham de seus indicadores e se esquecem do mundo. É no corpo do poema que a linguagem ainda se reinventa. É no teatro que a crítica encarna. É no cinema que o tempo social é revivido. É na literatura que o pensamento volta a ser afetado pela beleza e pela dor. E é no encontro entre arte e vida que a figura do intelectual ressurge. Não como celebridade. Não como autoridade. Mas como aquele que pensa com o mundo. Que intervém. Que escreve com urgência e com sangue.


O espaço da revista acadêmica, que poderia ser campo de experimentação, tornou-se uma engrenagem de vigilância. Editores evitam o risco. Conselhos editoriais operam por afinidades ideológicas. O pensamento que destoa é ruído. A ousadia, quando tolerada, deve ser disciplinada. Domada. Enformada. Em cada novo artigo publicado, repete-se o já dito. Em cada nova edição, reitera-se o já aceito. A crítica virou arquivo. O texto virou protocolo. A ciência virou produto de prateleira. A publicação virou estatística.


Mas nem tudo está perdido. Há territórios de fuga. Para escapar da máquina de repetir, restam os sites libertários que florescem à margem. Restam os blogs literários, onde a palavra dança fora do protocolo. Restam os sites jornalísticos que acolhem o pensamento vivo. Restam as revistas não indexadas, periféricas e ousadas, que publicam o que pulsa. E, acima de tudo, resta o mundo das esquinas.


As esquinas do pensamento não seguem normas. São lugares de invenção e risco. Ali a linguagem ainda respira. Ali o intelectual exilado ressurge em voz, corpo e gesto. Nas esquinas se pensa com o mundo. Se escreve com o real. Se sonha com palavras. Ali ninguém cobra fator de impacto. Ninguém exige citação em ABNT. Ali o que importa é a intensidade. A necessidade. O desejo de dizer. E é nessas margens que o pensamento ainda sobrevive.


Enquanto a publicação acadêmica continuar servindo ao conformismo institucional, seguirá reprodutora da mesmice. E o pensamento seguirá empobrecido, encastelado, vigilante, repetitivo. Resistir a isso é urgente. É um chamado à reinvenção da escrita, do saber e do sentido da pesquisa.


Pensar é romper. Escrever é arriscar. A universidade só se justifica se for espaço de liberdade. Liberdade começa pela linguagem. Pelo gesto de escrever contra a corrente. De dizer o que não se espera. De incomodar. De errar bonito. De arriscar ser incompreendido. E quando isso não for possível, que se escreva do lado de fora. Que se pense nas margens. Que se publique nas frestas. Que se sonhe nas esquinas.


Porque é nas esquinas que a liberdade, mesmo cansada, ainda dança. E é ali que o intelectual, desterrado das universidades, reencontra o seu lugar: entre o grito e o silêncio, entre a beleza e a falha, entre a palavra e o mundo.


             * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ


Este texto de Paulo Baía é um alerta e uma denúncia: a universidade brasileira está matando o pensamento crítico nas ciências humanas. A produção acadêmica virou rotina burocrática, onde o que importa não é pensar, mas publicar dentro de regras rígidas e previsíveis. O intelectual foi substituído pelo "produtor de artigos". A criatividade virou risco, a originalidade passou a ser punida, e a escrita se tornou um ato

domesticado. Mas ainda há resistência - nas margens, nos blogs, nas artes, nas esquinas onde o pensamento segue vivo. Este manifesto é um chamado para romper com a máquina de repetir e recuperar o sentido da escrita como ato de

liberdade.


https://utopiasposcapitalistas.com/2025/07/15/22091/

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