Dominância fiscal 0912
Decepção com pacote alimenta temores de dominância fiscal
Por Alex Ribeiro
O risco de o país entrar em dominância fiscal volta ao radar de economistas e investidores, dias depois de o governo anunciar um pacote de corte de gastos que frustrou as expectativas dos participantes do mercado financeiro, provocando alta da cotação dólar e pressão nas taxas de juros.
“Eu acho que hoje o risco de uma dominância fiscal é real”, disse ao Valor Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos. Na prática, a dominância fiscal significa que o Banco Central estaria diante de constrangimentos que limitam o uso da taxa Selic para segurar a inflação.
Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central, avalia que nas condições atuais a autoridade monetária ainda pode agir. “Uma expansão fiscal dessa magnitude gera inflação”, afirma. “O Banco Central tem condições de controlar essa inflação, só que a taxas de juros maiores.”
Quando a situação das contas públicas se torna muito crítica, a economia entra num limiar em que apertos monetários levam a mais inflação, em vez de baixá-la. O fenômeno é conhecido entre os economistas como dominância fiscal. Nessas circunstâncias, altas da Selic aumentam o gasto de juros com a dívida pública, piorando a percepção e solvência do governo e pressionando a cotação do dólar. O dólar mais caro, por sua vez, acelera a inflação.
“Não tenho certeza de que já estamos em dominância fiscal, diz o ex-diretor de política econômica do Banco Central, Sergio Werlang, que esteve à frente da implantação do regime de metas de inflação no Brasil. “O que sei é que a política monetária está menos eficaz. Isso é um dado.” Ele lembra que o juro real subiu, aumentou a inflação implícita dos títulos públicos e o dólar se valorizou ainda mais perante o real.
Há alguns dias, o futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galipolo, citou uma espécie de enigma: os economistas do mercado preveem que o Banco Central vai subir os juros para percentuais que eles mesmos consideram adequados, mas ainda assim as expectativas de inflação seguiram se deteriorando.
“Dominância fiscal se percebe ex-post”, explica a economista Zeina Latif, da Gibraltar Consulting. “Atualmente, a eficácia dos juros para controlar a inflação é baixa. A política monetária, sozinha, não vai fazer esse serviço, por isso tem que ser usada com parcimônia, sem grandes choques.”
As duas vezes que o Brasil esteve na zona de dominância fiscal foram na eleição de 2002, quando os participantes do mercado achavam que, se Lula fosse eleito, não manteria as contas públicas sob controle; e no governo Dilma Rousseff. Em ambos os casos, a inflação chegou a dois dígitos, e o país entrou em recessão, embora mais curta na primeira vez.
O país entra em dominância fiscal quando a dívida pública chega a um patamar tão alto que o esforço para pagá-la com cortes de gastos e aumento de impostos é excessivamente alto - e os governos lançam mão da inflação, que corrói o valor real de sua divida e de suas despesas. Mas os primeiros sintomas podem ser sentidos antes de a dívida atingir esse patamar, caso quem financia o governo chegue à conclusão de que já está em curso uma trajetória fiscal que levará a esse ponto.
Hoje, a dívida bruta se encontra em 78,6% do PIB, e alguns estudos acadêmicos dizem que nesse patamar já estaria nessa condição. Werlang cita um estudo do professor Aloisio Araújo, da FGV, Vitor Costa, Paulo Lins, Rafael Santos e Serge de Valk que estima o limiar em 90% do PIB.
Mas não é so o nível da dívida que importa, explica Werlang, mas tambem a direção. Durante a pandemia, a dívida bruta chegou próxima de 90% do PIB, mas havia o teto de gastos e a percepção dos agentes de mercado de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, estava empenhado no ajuste das contas publicas. Além disso, na pandemia, o Banco Central reduziu os juros básicos a 2% ao ano, o que significa encargos menores para a dívida bruta.
Hoje, o quadro é diferente: os juros estão altos, atualmente em 11,25% ao ano, e devem subir mais, para patamares superiores a 14% a ano, segundo previsões de analistas econômicos. A percepção dos participantes do mercado é que o governo Lula tem um baixo grau de comprometimento com o ajuste fiscal, e o frustrado pacote de corte de gastos piorou as coisas.
Economistas ouvidos pelo Valor explicam que dois fatores levaram à deterioração na percepção de solvência do governo nas últimas semanas, colocando a cotação do dólar acima de R$ 6 e os juros negociados em mercado para a casa dos 15% ao ano.
Primeiro, a estratégia fiscal adotada pelo governo Lula desde o início de seu governo era muito gradual e insuficiente para interromper a escalada da dívida pública num horizonte de tempo minimamente razoável.
Segundo, o pacote de medidas anunciado pelo governo em fins de novembro não tinha a abrangência necessária para corrigir o problema e, ao contrário, sinalizou baixa disposição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de fazer escolhas politicamente difíceis, que poderiam causar danos de curto prazo na sua popularidade.
“Ainda acho que o risco maior de uma trajetória pior do câmbio é com BC não fazendo seu trabalho, e não com ele fazendo”, avalia afirma o ex-secretário do Tesouro Nacional e head de macroeconomia do ASA, Jeferson Bittencourt. “Então acho que não estamos em dominância fiscal. Mas o fiscal tem que fazer o seu trabalho para que este tema não ganhe mais visibilidade.”
Os problemas já estavam presentes no início do terceiro mandato de Lula e, desde então, vieram se agravando. Ele assumiu com uma dívida bruta do governo geral de 71,7% do Produto Interno Bruto (PIB), alta para os padrões de países emergentes, que costumam ter débitos na casa dos 40% do PIB.
O resultado primário - ou seja, a economia que os governos fazem para pagar parte dos juros da dívida - também se deteriorou. Em 2022, o presidente Jair Bolsonaro encerrou seu mandato com um superávit primário de 1,25% do PIB, mas ele havia sido obtido com bases frágeis. O governo deixou de pagar alguns de seus compromissos, como os precatórios, e fez o ajuste graças à inflação, que corroeu gastos.
Um ano depois, o governo Lula já tinha um déficit primário de 2,29% do PIB. Parte disso se deveu ao pagamento de dívidas que não haviam sido saldadas pelo governo anterior e parte se deveu a expansão de gastos, incluindo o cumprimento de promessas de campanha de ambos candidatos. A primeira medida fiscal de Lula foi a aprovação de uma proposta de emenda constitucional que aumentou o nível de gastos em 1,7% do PIB. Também foi adotada uma política de reajustes reais do salário mínimo e foi retomada a regra que faz os gastos com saúde e educação aumentarem junto com a arrecadação.
Para segurar a alta da dívida bruta, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, propôs e aprovou no Congresso Nacional o chamado arcabouço fiscal, que basicamente limita o crescimento real dos gastos a 2,5% reais ao ano. Também adotou metas de superávit primário que, ao longo dos anos, sinalizavam a intenção de retomar superávits primários necessários para estabilizar a relação entre a dívida e o PIB.
“O mercado financeiro sempre achou o arcabouço insuficiente para estabilizar a dívida bruta”, diz Bittencourt. Segundo ele, isso pode ser ilustrado pelos dados do chamado Prisma Fiscal, uma pesquisa que a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda faz junto aos especialistas do mercado para colher as expectativas sobre a política fiscal.
Bittencourt destaca dois conjuntos de dados. Primeiro, o mercado projeta até 2033 uma alta nominal do gasto de 5,5% ao ano, o que significa uma alta da despesa dentro do limite de 2,5% estabelecido pelo arcabouço, considerando que a inflação fique na meta, de 3%. Assim, deduz-se que os analistas econômicos acham que o governo vai cumprir o arcabouço fiscal.
Segundo conjunto de dados: o mercado prevê que a dívida bruta vá subir em todos os anos até 2033, último período para o qual há projeções disponíveis, chegando a 94,4% do PIB.
Juntando os dois conjuntos de dados, a conclusão é que o mercado acredita que o governo Lula e as gestões seguintes vão cumprir o arcabouço fiscal, mas não acha que isso seja suficiente para estancar a escalada da dívida.
Por que o arcabouço é insuficiente? Uma regra de bolso muito usada pelos economistas diz que, para estabilizar a dívida bruta, o superávit primário teria que equivaler à diferença entre os juros que, em média, o governo paga ao longo dos anos sua dívida e o crescimento real de longo prazo da economia.
Numa conta conservadora, que estima a capacidade de crescimento da economia em 2,5% e os juros de equilíbrio de 4,75% ao ano, o superávit primário requerido para estabilizar a relação entre a divida bruta e o PIB seria de pouco mais de 2% do PIB. Num artigo recente no Valor, Arminio estimou esse primário em 3% do PIB, mas ele pondera que uma queda inequívoca a dívida deveria exigir mais do que isso.
Ou seja, numa visão mais otimista, precisaria de um ajuste fiscal de 2,5 pontos percentuais do PIB para levar o superávit primário a 2% do PIB, considerando o déficit de 0,5% do PIB previsto para este ano. Nos cálculos de Bittencourt, o arcabouço fiscal leva a uma melhora de 0,15 ponto percentual do PIB no superávit primário, por ano. Assim, o arcabouço levaria cerca de 17 anos para obter o superávit primário necessário para estabilizar a dívida bruta, na visão otimista.
“Não estava clara uma estratégia de contenção da expansão da dívida em relação ao PIB, esse é o problema maior”, afirma Meirelles. “A continuar no ritmo atual, a dívida vai superar os 90% do PIB. Isso preocupa porque, quando vai chegando a níveis maiores, aumentam o risco e os juros no mercado para a venda de títulos do governo.”
Desde o princípio, era de conhecimento do mercado que as contas não fecham, mas havia uma expectativa de que o pacote do governo fosse na direção correta, lidando de forma gradual com as despesas que tornam insustentáveis as contas públicas.
Os grupos principais são as despesas com a Previdência, que estão pressionadas pelo envelhecimento da população brasileira e pelos reajustes do salário mínimo. Muitos economistas consideram insustentável os gastos com saúde e educação crescerem junto com a arrecadação, como determinado pela Constituição de 1988. Meirelles defende uma reforma administrativa para reduzir gastos com funcionalismo. Arminio acha necessário rever os gastos tributários. O pacote frustrou as expectativas porque mexeu em poucos pontos.
Da forma como foi divulgado, diz Bittencourt, o governo transpareceu, aos olhos do mercado, pouca disposição para medidas impopulares. “Aparentemente, havia no mercado alguma esperança de que o governo Lula iria utilizar o seu capital político para melhorar as condições macroeconômicas”, afirma.
“Primeiro, o anúncio foi continuamente adiado. Isso foi criando uma preocupação no mercado de que o governo estava tendo dificuldades para chegar ao tamanho necessário do pacote”, diz Meirelles. “Depois, com todos esperando cortes de gastos, veio a notícia de que o governo estava cortando impostos com a isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil.”
Zeina reconhece alguns pontos positivos do pacote, como a disposição do governo em rever a regra de reajuste do salário mínimo. “Não é uma boa proposta, mas bem ou mal reconheceu que a regra que vincula o reajuste do salário mínimo ao PIB foi equivocada.” Ela também cita a decisão de mexer com o abono salarial, com o benefício de prestação continuada (BPC) e com a previdência dos militares.
Ainda assim, afirma, o pacote frustra pela abrangência restrita. Faltou o governo sinalizar que está disposto a fazer mudanças, ainda que incrementais, em temas como vinculações constitucionais de gastos, seguro desemprego e reforma administrativa. “Quando se fala em dominância fiscal, o sinal que governo dá sobre a disposição para resolver o problema fiscal é importante”, diz Zeina.
Na sexta, o dólar voltou a subir, fechando em R$ 6,07, em parte porque o mercado identificou baixa disposição também no Congresso na aprovação do pacote fiscal. Um texto para discussão apresentado pelo economista Barry Eichengreen na reunião de banqueiros centrais de Jackson Hole, em 2023, mostra que, em tempos de polarização política, ajustes fiscais são mais difíceis, porque é mais difícil encontrar consenso nos parlamentos e os governos evitam medida impopulares e ajustes que possam ser recessivos.
Os economistas debatem há décadas os impactos dos ajustes fiscais na atividade econômica. Em meio a uma grave crise cambial, em 1998, o governo anunciou um pacote fiscal que chegou a cerca de 4 pontos percentuais do PIB. Ainda assim, a economia evitou uma recessão, que parecia certa, e cresceu 0,5% em 1999.
“Sei que o momento não parece propício, mas se entrar em pauta um ajuste fiscal estrutural, amplo, que aborde os grandes problemas, eu apostaria que o impacto na economia seria positivo, assim como foi em 1998 e 1999”, diz Arminio.
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