Fernando Schuller

 Fernando Schuller

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“Nossa crise é moral”, me dizia um velho intelectual, um tanto abatido, por estes dias. Ele se referia às recentes anulações de condenações de réus confessos, bem conhecidos, mas parecia irritado mesmo com aquele vídeo do Sérgio Cabral em uma piscina de cobertura, Pão de Açúcar ao fundo, no Rio, dando dicas de cinema. A Transparência Internacional definiu as imagens como o “símbolo da impunidade” brasileira, visto se tratar de um sujeito condenado a “400 anos de prisão” por corrupção serial, confessada e comprovada. Posso estar errado, mas desconfio que essas coisas caíram na rotina brasileira. Em parte, porque a polarização política ajusta a bússola ética. Tendemos a ver o problema sempre do “outro lado”. O que já é algo oposto ao sentido da ética. Além disso, as pessoas vão se acostumando.
Não somos o país da moral da “casa e da rua”, do “você sabe com quem está falando?”, como tanto escreveu o mestre Roberto DaMatta? Ainda nesta semana, a Transparência Internacional mostrou que caímos mais três posições no ranking global de percepção da corrupção. Já havíamos caído dez, no ano anterior, e agora mais um recuo. Ficamos com 34 pontos, ante 66 na média da OCDE. Nosso pequeno vizinho, o Uruguai, cravou 76 pontos. Qual é mesmo o nosso problema?
De minha parte, a pergunta fascinante é menos sobre o país e mais sobre como cada um de nós lida com tudo isso. E não me refiro apenas aos grandes dilemas, do tipo “devo pedir propina quando estou no governo?”. As perguntas interessantes são mais simples. Coisas como “devo contar toda a verdade quando um pequeno esquecimento pode me ajudar em um bom negócio?”. Ou: “vale agir com civilidade, em vez de ofender, em um debate nas redes sociais?”. Não vai aqui nenhum moralismo. São apenas questões reais, que definem a vida que temos para viver. É aí que entram as lições de um filme que o ex-governador não indicou: Jurado Nº 2, de Clint Eastwood. Ele toca no nervo da ética: como deveríamos agir se soubéssemos o que é certo fazer, mas que se fizéssemos o contrário levaríamos uma boa vantagem? É o drama de um sujeito boa-praça, Justin Kemp, jurado em um caso de assassinato. Sua mulher está grávida e ele está tentando ser um cara decente. O julgamento começa e, por um desses acasos da vida, Kemp se dá conta que o acusado provavelmente seja inocente. E que ele mesmo pode ser o autor do crime. O que fará com aquela informação? Se ele contar, é provável que termine na cadeia. Se não contar, terminará condenando um sujeito inocente à prisão perpétua, e sairá dali com um enorme problema de consciência.
O filme sugere uma pergunta: como cada um de nós agiria? Platão fez essa pergunta quando contou sua famosa história do anel de Giges, em A República. Giges era um camponês, achou um anel que lhe permitia ficar invisível e logo percebeu que aquilo lhe dava um enorme poder. Se ele podia entrar no palácio e matar o rei, sem ser percebido, por que exatamente ele não faria isso? O.k., ninguém aqui mataria rei nenhum. Mas essa é uma saída fácil. As perguntas reais são mais prosaicas. Você devolveria aquele dinheiro que caiu por engano na sua conta e ninguém aparentemente tem como rastrear? Você gasta o tempo da empresa tagarelando na internet na hora do batente? A história de Giges vai no coração do problema: a ética diz respeito a como decidimos agir quando ninguém está nos observando. Como escutei de um antigo professor, “se temos bons argumentos para não usar o anel a nosso favor, então, sim, a ética tem vez”. E aí vem a pergunta: há bons argumentos para além de um moralismo pouco convincente? Sócrates sugere que sim. Pode ser vantajoso, para cada um, cometer algum delito, mas é péssimo para nossa vida coletiva, da qual todos fazemos parte. Vai aí um certo heroísmo. Sócrates agiu assim quando decidiu beber aquele cálice de cicuta, ao invés de fugir. Na pior de todas as horas, escolheu respeitar as leis de Atenas, sob as quais ele havia vivido. Exemplo extremo, convenhamos. Mas fixa um padrão. A justiça é um tipo de bem que torna nossa vida coletiva possível. E quando internalizada na nossa maneira de viver, mesmo nos momentos mais complicados, podemos chamar de virtude.
O herói socrático quem sabe esteja mais para um anti-herói. Ele se recusa a inventar uma ética própria, se submete à regra comum. Age conforme as leis, mesmo que possa fazer o contrário. Não é bem assim que age o personagem de Eastwood, mas vou evitar o spoiler aqui. O ponto é mostrar que a opção pela ética, no fundo, tem sido uma escolha precária. Há boas razões a favor, mas elas nunca serão realmente suficientes. De modo que, por vezes, vence a escolha socrática; por vezes, não. Raskólnikov, no clássico de Dostoiévski, fez a escolha socrática, depois de muito cambalear. Decidiu confessar aquele crime idiota que ninguém havia visto. Ele tinha seu anel e em algum momento tenta imaginar a si mesmo como um “homem napoleônico”, capaz de produzir sua própria régua moral. Mas não consegue. A consciência o machuca, e isso mostra apenas que ele é um homem comum.
O filme de Eastwood termina com um encontro. A campainha toca, na casa de Kemp, e quem está à sua porta é a promotora. Ela havia se dado conta de toda a verdade e agora estava ali . Os olhares se cruzam, e nada precisar ser dito. É exatamente assim com a ética. É possível ganhar alguma coisa cometendo um delito qualquer. Mas não é crível que se possa viver uma vida dessa maneira. Talvez vai aí a grande lição socrática: a ética importa porque a vida é longa. Isso vale para cada um de nós e vale para um país inteiro. Se um país permite que a escolha antiética seja premiada ao longo do tempo, quem sabe à beira de alguma piscina, alguma coisa tremendamente errada está se passando. E quem sabe, neste exato sentido, meu amigo melancólico tenha razão. Talvez por isso somos o país das Américas com o menor índice de confiança interpessoal, com apenas 4,6% de respostas positivas, ante 41% na média dos países da OCDE.
Confesso não fazer ideia sobre como reverter esse processo. A ética é uma ótima escolha ao longo do tempo (os países escandinavos estão aí para nos mostrar), mas exige um sentido de renúncia. Em momentos cruciais, é preciso beber daquele veneno, como fez Sócrates. Ou ter a humildade de confessar e ir para a Sibéria, como fez Raskólnikov. Ou ainda encarar aquela promotora e finalmente dizer a verdade, como talvez tenha feito Justin Kemp, em um desfecho que Eastwood deixou em aberto. De novo, há certo heroísmo aí. O heroísmo das pessoas que se veem como iguais em direitos. Que não se veem como capazes de fixar a própria régua moral, mas aceitam viver sob as regras e razões compartilhadas entre todos. Não sou moralista a ponto de dizer que é nossa única escolha. Nem a mais trivial. Mas que faria bem ao Brasil que um dia vamos deixar como herança, disso não tenho dúvidas.

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