Felipe Salto

 Um contraponto aos cálculos de Marcos Mendes para o déficit público


03/02/2025 05h30


O economista Marcos Mendes publicou, no último dia 24, um artigo na Folha de S.Paulo ("Autópsia do déficit primário de 2024") para contestar o realismo do déficit primário de 0,1% do PIB (Produto Interno Bruto) obtido no ano passado. Esse 0,1% do PIB é obtido a partir da exclusão de R$ 32 bilhões do déficit observado, de R$ 43 bilhões (0,4% do PIB), conforme divulgação do governo. O abatimento trata, mormente, de despesas com o Rio Grande do Sul.


A saber, as regras vigentes determinam a fixação de metas fiscais anuais para o resultado primário (aquele que não inclui os juros da dívida). É possível acompanhar mensalmente esse saldo na Nota de Estatísticas Fiscais do Banco Central, com as principais aberturas do resultado sendo divulgadas pelo Tesouro Nacional.


A ideia de produzir resultados e cálculos alternativos para avaliar a situação fiscal é antiga e está associada à necessidade de cotejar o esforço fiscal a variáveis que traduzam os efeitos do ciclo de atividade econômica sobre as receitas públicas, por exemplo. Quando a economia vai bem, as receitas crescem mais, e, naturalmente, o resultado primário melhora.


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Outro objetivo desses cálculos, para ter claro, é limpar as séries originais de efeitos causados por receitas e despesas atípicas e pela evolução da atividade econômica. Uma terceira frente de contas alternativas ou auxiliares à análise das divulgações regulares é internalizar gastos realizados por fora do Orçamento geral.


Parece ser este último o objetivo de Marcos Mendes. Na verdade, uma mistura de objetivos: limpar o resultado de 2024 dos efeitos de eventos não recorrentes e contabilizar impactos fiscais não contemplados na estatística oficial de resultado primário.


Nas contas de Mendes, o resultado do ano passado poderia chegar a impressionantes 2,1% do PIB (R$ 243,6 bilhões), um déficit bem superior ao 0,4% do PIB divulgado oficialmente. É importante analisar detidamente sua estimativa, especialmente porque, como apontaremos abaixo, há inconsistências em seu cálculo.


Sobre os critérios


De início, é preciso estabelecer critérios claros sobre qual é o conceito de resultado primário adotado, o que o artigo não faz. Isso, pois, adicionar ou subtrair gastos e receitas pode levar, virtualmente, a qualquer saldo. Mas, com qual objetivo? E sob quais critérios?


Ademais, seria essencial adotar parâmetros sistemáticos sobre aquilo que não é recorrente ou para a internalização de determinados dispêndios extraorçamentários. Esses critérios deveriam ser passíveis de serem aplicados para todos os anos, de maneira transparente.


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Por exemplo, ao mesmo tempo em que a rubrica de receitas de concessões contém elementos que não se repetem, sempre surgem novas concessões e receitas de outorgas. Ou, pelo lado dos gastos, certas despesas discricionárias podem ser cortadas de maneira livre, mas ao mesmo tempo são executadas em quase todos os anos.


Correções


A seguir, vamos partir do déficit de Mendes, calculado em R$ 243,6 bilhões, para promover as correções que julgamos apropriadas. Ao final, obteremos um novo número, que poderia ser considerado uma espécie de resultado primário recorrente para o ano de 2024, com método potencialmente replicável para a série histórica do indicador.


Primeiramente, pela comparação estabelecida com o número do governo, o ideal seria excluir receitas e despesas financeiras, afinal, estamos tratando do resultado primário. Assim, como há R$ 40 bilhões de dispêndios financeiros na conta do autor, denominados por ele de gastos parafiscais, subtraímos esse montante da estimativa inicial, chegando a R$ 203,6 bilhões.


Agora, para melhor estabelecer o contraponto ao referido artigo, vamos avaliar o que não é recorrente no resultado primário do ano passado. Do lado dos gastos, os emergenciais, de cerca de R$ 31,5 bilhões, não devem se repetir. Por outro lado, Mendes está correto em incluir dispêndios realizados em 2023 como pertencentes ao resultado recorrente de 2024. Especificamente, os R$ 32,3 bilhões em precatórios e os R$ 6,1 bilhões do Programa Pé-de-Meia. Já os referentes à compensação a Estados e Municípios, de R$ 8,7 bilhões, apesar de inicialmente previstos para 2024, são extraordinários.


Dos R$ 31,5 bilhões emergenciais, Mendes considera que R$ 4,4 bilhões em precatórios de 2025 (referentes ao Rio Grande do Sul) não devem ser contabilizados no déficit primário de 2024, o que é correto. Assim, esses gastos incrementam seu déficit em R$ 27,1 bilhões. Como removemos essas despesas por serem não recorrentes, além da Compensação a Estados e Municípios, o déficit calculado por Mendes já cairia para R$ 167,8 bilhões (203,6 - 27,1 - 8,7).


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Quanto às receitas, seguem nossas observações. A taxação do estoque de fundos exclusivos (R$ 5,7 bilhões líquidos) e a atualização de valores no exterior (R$ 3,8 bilhões líquidos) são não recorrentes, como apontou Mendes.


Sobre a arrecadação oriunda da limitação das compensações tributárias (R$ 24 bilhões), é difícil saber se essa medida angariou, de fato, o montante indicado, além de tal arrecadação ser partilhada com os entes subnacionais. Se assumirmos que toda redução no uso desses débitos deveu-se à mudança legislativa, o efeito teria sido de R$ 12 bilhões, segundo dados da Receita Federal. Então, a questão da partilha se impõe. Assumindo que 70% ficariam para a União, o valor considerado não recorrente seria de R$ 8,4 bilhões, uma diferença de R$ 15,6 bilhões para o número de Mendes.


Já as mudanças nas subvenções do ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), antes abatidas na base dos tributos sobre o lucro, não tiveram ainda efeito perceptível, além de não serem totalmente extraordinárias em seus efeitos, uma vez que afetarão estruturalmente as receitas. Para essa questão, Mendes atribuiu efeito de R$ 13 bilhões.


As alterações no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiacais), apesar de terem rendido apenas R$ 400 milhões, deveriam ter impacto perene também. Retirando, assim, mais R$ 29 bilhões do déficit de Mendes, temos um saldo negativo em R$ 138,8 bilhões (167,8-13 -15,6-0,4), agora.


Na sequência, temos rubricas que obrigam à comparação com períodos pregressos, como no caso dos dividendos. Os R$ 31 bilhões retirados pelo autor se referem basicamente a todos os dividendos do último bimestre. Isso não parece razoável. Pode-se até questionar que fatores condicionantes produziram essa elevação das receitas de dividendos, mas subtraí-las a título do quê?


Por isso, optamos por retirar os R$ 31 bilhões do número de Mendes, levando o déficit recorrente para R$ 107,8 bilhões (138,8-31).


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Nas concessões, mais R$ 6 bilhões são acrescentados ao saldo negativo pelo autor. Porém, essa é uma rubrica em que boa parte das receitas é imprevisível, mas algum nível de arrecadação é esperado todo ano. Se juntarmos mais R$ 4,1 bilhões de receitas que deveriam compensar a desoneração da folha, por ordem judicial, o déficit calculado por Mendes cairia para R$ 97,7 bilhões.


Outra ordem judicial, de retenção das emendas, tem valor difícil de aferir, no sentido de ter contribuído para o cumprimento da meta. Além disso, estão entre as discricionárias, cuja dificuldade de classificação como não recorrente já foi descrita acima. Temos agora um déficit de R$ 93,7 bilhões.


Por fim, podemos retirar da conta de Mendes a transação tributária da Petrobras, no valor de R$ 11,9 bilhões. Esse tipo de transação se refere a tributos que deixaram de ser pagos e é um instrumento previsto em lei exatamente para tais situações. Foi criado em 2020. A partir de então, ele é utilizado com frequência.


Em conclusão, partindo dos R$ 243,6 bilhões de déficit de Marcos Mendes, chegamos em algo em torno de R$ 81,8 bilhões, ou 0,7% do PIB, como saldo negativo recorrente. Vale dizer, esse número não seria exatamente novidade.


Teríamos que realizar um ajuste cíclico a esse cálculo para obter o primário estrutural. Isso aumentaria um pouco o déficit, ao considerar parte da arrecadação como resultado apenas da expansão econômica acima de seu potencial. Com isso, teríamos um número próximo de 1% do PIB em termos de déficit estrutural. Esse valor é semelhante ao estimado pela própria Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda.


*Felipe Salto é colunista do UOL, economista-chefe da Warren Investimentos e ex-Secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo. Gabriel Garrote é economista pela USP, Mestre em Economia pela FGV e economista da Warren Investimentos.

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