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Amilton Aquino

 Não queria escrever mais um post sobre Trump, mas o que aconteceu nesta sexta é de uma importância tão grande que será lembrado nos livros de história como o dia em que a ordem internacional do pós-guerra foi definitivamente sepultada. Na verdade, isso já vinha acontecendo desde a campanha presidencial dos EUA, quando Trump começou a normalizar Putin. A constrangedora situação a que Zelensky foi submetido apenas ratificou da forma mais vil possível aquilo que muitos defensores de Trump se recusavam a enxergar: os EUA abriram mão de seu papel de liderança das democracias. A OTAN já não garante a segurança do bloco ocidental. Agora, a lei é cada um por si, a lei do mais forte, um novo mundo onde EUA, China e Rússia ditam as regras conforme seus interesses geopolíticos e comerciais, passando por cima de valores e consensos que o mundo levou décadas para amadurecer depois de muito sofrimento.


A partir de hoje, países até então problemáticos para a paz mundial, como Alemanha e Japão, que se tornaram dois dos países mais pacíficos do mundo em troca do escudo norte-americano, podem iniciar corridas para desenvolver seus próprios arsenais nucleares. O mesmo pode acontecer com a Ucrânia, que hoje lamenta ter aceitado o acordo de 1994, no qual entregou seu arsenal à Rússia em troca de proteção da OTAN de uma eventual agressão russa.


Portanto, ao contrário do discurso hipócrita de Trump, que se diz muito preocupado em “promover a paz” a qualquer custo, igualando agressor e agredido (o mesmo discurso de Lula e Bolsonaro, vale lembrar), o mundo ficará muito mais perigoso nos próximos anos. Inclusive para os EUA, que hoje estão protegidos por um oceano, como argumentou Zelensky. Ou seja, ele não falou nada demais, mas Trump transformou algo óbvio em uma agressão aos EUA, afirmando com o dedo em riste que Zelensky não tinha o direito de dizer “como os norte-americanos se sentirão”. E encerrou a conversa, negando-lhe o pedido de falar, e ainda o cutucou dizendo que ele “já tinha falado demais”, sugerindo que tudo aquilo que aconteceu seria uma festa para a imprensa. De longe, o maior desastre para a história da diplomacia mundial.


Embora muita gente tenha achado que Zelensky não foi hábil o suficiente para se desvencilhar da má vontade de seus dois detratores, me parece muito claro que, se o evento não foi uma arapuca previamente armada para humilhá-lo, na prática foi o que Trump e Vance fizeram.


Conseguiram? Pela reação mundo afora, acho que o tiro saiu pela culatra, pois os representantes das principais democracias se manifestaram em peso em solidariedade a Zelensky. Na minha timeline pipocam a apoios a Zelensky, contrastando com algumas postagens que tentam “justificar” o xadrez 4D de Trump. Curiosamente, essas justificativas vêm da direita iliberal, trumpista/bolsonarista, ou da esquerda jurássica, saudosa da antiga URSS, que vê em Putin um desafiador da hegemonia norte-americana.


Narrativas à parte, o fato é que, horas antes do evento, Trump foi questionado sobre por que achava Zelensky um ditador e respondeu, com a maior cara de pau do mundo, que não lembrava de ter dito isso. Ou seja, acredito que ele de fato queria assinar um acordo com Zelensky, e que a reunião descambou de forma natural, não planejada. O problema é: qual acordo ele queria assinar? A julgar pelo que foi vazado para a imprensa, a Ucrânia seria praticamente extorquida pelos EUA sem qualquer garantia de proteção, incluindo a concessão à Rússia das terras invadidas e a negação de entrada da Ucrânia na OTAN. Praticamente uma rendição. Ora, se é para se render e ser extorquido, melhor Zelensky ir direto a Moscou. Não precisaria passar pelo constrangimento de ouvir de Trump que “seu ódio a Putin é um obstáculo à paz”.


No mais, a Europa tem agora a obrigação moral de arregaçar as mangas e continuar apoiando a Ucrânia em seu esforço de guerra. Esta não é uma guerra qualquer, mas sim a linha que separa um mundo regido pelo direito internacional de um mundo dominado pelos mais fortes, ao qual Trump resolveu aderir.

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