Amilton Aquino
Uma das coisas mais lamentáveis do mundo atual é o aumento expressivo das possibilidades de criação de narrativas. Para qualquer coisa, por mais absurda que seja, uma massa acéfala estará pronta para consumi-la e disseminá-la. E, num mundo cada dia mais complexo, cheio de nuances e contradições, basta uma meia-verdade, uma foto descontextualizada ou um material qualquer falsificado pela IA para tocar o berrante da massa ávida por reforçar suas doentias crenças.
Ver a mentira ser reproduzida por um cidadão comum já é lamentável. Agora, ver a mentira mais absurda ser repetida e normalizada pelo homem mais poderoso do mundo é de embrulhar o estômago. Se o início de fevereiro de 2025 entrou para a história como a data da cisão da cooperação militar entre os EUA e as democracias europeias, esta semana marca o triunfo da mentira de Putin — o denominador comum que une populistas de direita e de esquerda. “Zelensky iniciou a guerra!”. Não foi Putin quem invadiu a Ucrânia duas vezes em seis anos (a primeira, antes mesmo de Zelensky chegar ao poder). A culpa é do “comediante” Zelensky. Ele seria o verdadeiro ditador, que não realiza eleições, apesar de a constituição ucraniana proibir expressamente eleições em tempos de guerra. Segundo Trump, o verdadeiro democrata é Putin, que realizou eleições em tempo de guerra — ainda que eliminando seus principais opositores!
Agora ficou fácil entender por que Trump prometia acabar com a guerra em 24 horas. Ele não só planejava sentar no colo de Putin, repetindo suas mais descaradas mentiras, como agora dá um xeque-mate na Ucrânia, ao exigir metade do que for extraído de minerais raros sem sequer prometer continuar ajudando o país oprimido pelos russos.
O que resta então à Ucrânia? Desenvolver seu próprio arsenal nuclear, corrigindo o erro histórico ao assinar o Acordo de Budapeste de 1994, pelo qual se comprometeu a abrir mão de seu arsenal nuclear em troca da defesa da Otan em caso de agressão russa. Mas isso, claro, só será possível se a Europa continuar ajudando a Ucrânia, pois, do contrário, o país poderá ter o mesmo destino da Chechênia, que chegou a expulsar os russos de seu território, mas acabou voltando a ser um estado fantoche de Moscou após a cooptação de seu ditador.
Quem será o próximo? A Europa se pergunta. No novo mundo de Trump, os EUA — que lideraram a criação dos organismos internacionais responsáveis por estabelecer consensos mínimos de civilidade nas relações internacionais — agora diz não ter nada a ver ver com qualquer esforço mundial de combate à tirania.
Ou seja, a repulsa justificável aos excessos da cultura woke nos organismos internacionais está nos levando ao outro extremo: ao vale-tudo da era anterior às duas guerras mundiais, quando prevalecia o colonialismo descarado e a lei do mais forte.
E o mais lamentável de tudo é que a Rússia está muito próxima de ser derrotada militarmente, ao ponto de ter que recorrer à ajuda da Coreia do Norte e do Irã. Mais um ou dois anos de apoio à Ucrânia, e a Rússia seria forçada a se retirar do país, assim como se retirou do Afeganistão.
“Entre a desonra e a guerra, escolhestes a desonra, e terás a guerra.” A frase profética de Churchill sobre Chamberlain aplica-se também a Trump — o tigrão com os pequenos e tchutchuca com os fortões.
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